Memórias, sonhos, reflexões – Carl Gustav Jung

Do analista junguiano li outros livros. Exigência da minha formação em Arteterapia, cuja teoria faz pano de fundo para todo entendimento arteterapêutico. Mas, diferentemente dos outros livros, o livro de Memórias de Jung mescla teoria, vivência, a infância, adolescência, os pais, a religião, a morte, o dia a dia, viagens, opiniões, dados sobre a família, cartas, etcetcetc. Quase uma autobiografia. Tudo muito espontâneo. A teoria que acompanha textos e comentários mais parece um processo cognitivo em busca de sentido. Algo como a construção de um entendimento a partir de ideias e lembranças, sonhos e devaneios … um eterno amadurecer, onde complementos são sempre bem vindos e adequações, idem. A obra de uma vida com gosto de obra inacabada.

O texto, em alguns momentos agradável de ler, parece um diário. Em outros momentos, o texto é denso e pesado. Pulei algumas partes. Por isso, o livro continua na cabeceira pra ler o não lido, reler o esquecido, reconsiderar hipóteses, me aprofundar no imaginário de Jung e me inspirar em sua coragem.

Acompanhar a linha de raciocínio de Jung é inspirador. Imagino como era pensar e registrar os mais estapafúrdios pensamentos e ideias há mais de 100 anos, e mesmo assim, acreditar e perseverar. Lembro-me de quantas vezes pensei em soluções, ideias e projetos, cheia de energia e criatividade, para depois, ao perceber por onde andaram meu bom senso e racionalidade, acabar boicotando atitudes, textos e programações. Jung acatava as mensagens que vinham do seu inconsciente e não se importava com o que os outros iriam pensar, nem o quanto ele precisaria se desviar do que estava fazendo para implementar aquilo que lhe apareceu em sonhos, devaneios, observações e insights. São tantos os momentos em que Jung fez o que sentiu que deveria fazer que, se vivesse na atualidade, seria visto como pessoa disfuncional. A ideia da personalidade nº1 e nº2, onde a nº1 era objetiva e a nº2 absolutamente subjetiva, possivelmente seria considerada um distúrbio de personalidade. Dissociação. Jung não esconde suas fases depressivas e esquisitas, nem o quanto foi importante contar com a família, amigos e a própria arte como forma de superar estes períodos sombrios. Mesmo indeciso e inseguro com suas escolhas e ideias, seu inconsciente sempre lhe deu sinais – que ele considerou e levou à sério – para seguir em frente.

Pra variar vou ter de reler o texto. Ele vale. E o recomendo a todos que querem conhecer um pouco mais sobre Jung e se inspirar em sua coragem, foco e determinação.

Como sugestão:

  • Leia aos poucos.
  • Saboreie temas e frases.
  • Deixe-se levar.
  • Possivelmente Jung tenha sido o maior expedicionário e explorador do universo do inconsciente humano.
  • Não tenha medo.
  • Se entregue.
  • Entre em contato com seu próprio inconsciente. Escute-o. Dê-lhe espaço e atenção. Ele sabe muita coisa sobre você, que você nem desconfia.

DI em Lajeado

Enfim, a segunda mostra dos Diálogos do Inconsciente aconteceu.Bom rever amigos queridos e conhecer outros apreciadores da arte.

Obrigada aos que conseguiram se organizar e vir.

A todos os outros, fica o convite.

Apareçam e se surpreendam.

Making Off DI em Lajeado – RS

Quando liguei pra Claudine – do SESC – oferecendo levar a exposição Diálogos do Inconsciente pra Lajeado, não imaginei que em 37 dias estaria expondo no Shopping de Lajeado. Trazer pra cá os Diálogos do Inconsciente é tipo “Se Maomé não vai à montanha então a montanha vai à Maomé.” Mesmo pronta, a exposição exige ações do porte da mesma. As telas são grandes. A quantidade também (e isso que várias telas não viajaram pra Lajeado).

Decidi não pensar nestes detalhes e viver o momento. Fiquei felicíssima.

Lajeado me viu crescer e florescer como psicóloga e mulher independente. Foi onde vivi momentos inesquecíveis e fiz incontáveis amigos. Expor em Lajeado tem a ver com um projeto e processo pessoal e como disse minha amiga Jussara “O bom filho à casa torna! E quando retorna com uma obra grandiosa, a Terra o aplaude!” Palavras inspiradoras. Que assim seja!

Passado o momento feliz, hora de cair na realidade: definir quais telas levar; como transportar; burocracia … Apesar de noites mal dormidas, momentos de ansiedade, no final, sei que tudo se ajeita e acontece.

convite DI

E assim, no dia 22/02 iniciei os preparativos para a exposição: depois de definidas quais obras levar, hora de preparar “as meninas” (como chamo carinhosamente minhas telas) para o passeio, embrulhá-las em plástico bolha, acomodá-las na camionete (Obrigada maridão pela força!!!!), viajar 600Km a 80-100Km/h, chegar em Lajeado com 37o C, descarregar, recolher outras telas na casa da mãe e de Lajeado e integrá-las à exposição. Dia 25 é dia de preparar os totens/biombos e os cavaletes e pensar na apresentação.

 

E aí amanhece o dia 26, o grande dia. É hora dos ajustes finais. Posicionar os totens e cavaletes. Prender as telas maiores. Organizar o espaço para projeção de vídeos e o coquetel. A exposição está preparada.

 

 

Diálogos do Inconsciente – como tudo começou

Difícil acreditar que não houve programação nem para a pintura das telas, nem para a exposição Diálogos do Inconsciente. Aquele tipo de coisa que simplesmente acontece porque tem de acontecer.

Havia feito releituras de pintores famosos de 1996 à 2000 com professores, pinceis, técnicas e escolas. Abandonei os cursos porque não conseguia dar aquelas pinceladas marcantes e fenomenais. Era boa nos fundos, nos preenchimentos, uma ou outra sombra, algum reflexo. Meu tempo era escasso. A dedicação também. Fechei a maleta de tintas, limpei os pinceis, emoldurei as últimas telas. Me recolhi. Não queria mais aquela obrigação de mostrar um trabalho que não me satisfazia. Voltei aos crochês e ao bordado arraiolo. Me dediquei à família e à carreira. Brinquei com paisagismo e jardinagem. Fui ler e escrever. Viajei.

E um dia, passados 15 anos, renascia o desejo de trabalhar com as tintas. Encomendei uma tela. Grande até para meus padrões anteriores. Como dizia minha professora Anelise Dessoy, uma telinha era como um cocô de mosca na parede. Uma tela de 1,00 X 1,50 era outra coisa. Um espaço todinho meu. Pintei, lambuzei, repintei, colei, raspei, pintei de novo e de novo. Um trabalho de persistência e experimentação. O resultado agradou. “Mudança”, a tela da adega, reflete exatamente meu momento de vida.

Depois dela, vieram outras.

Durante quatro anos, uma ou duas vezes por ano, quando sentia aquela necessidade de pintar, encomendava telas, providenciava tintas, e, chegada a hora, forrava a garagem com lona plástica preta e organizava todo material. Abria uma garrafa de vinho e convidava Beethoven, Mozart, Schubert, Brahms e Strauss a dar ritmo e movimento. O incenso aceso me conduzia a um estado onírico de entrega total. As telas iam ficando prontas e eu as colocando nas paredes. Elas conversavam comigo e eu com elas.

Chegou o momento de apresentar o artigo científico para a conclusão da minha formação em Arteterapia. Depois de aventar sobre diversos temas, escrever sobre meu processo arteterapêutico, me pareceu o único tema possível. Nascia assim os Diálogos do Inconsciente. Meu artigo arte-científico ganhava contorno e forma com teoria, técnica e vivência pessoal. Nesse meio tempo, um amigo entendido em arte e nos trâmites para expor, descobriu minhas telas e agendou minha primeira exposição no Espaço Cultural BRDE, em Florianópolis, em 2018.

A partir daí a coisa ficou realmente séria. Expor minhas telas era me expor. Era expor meu inconsciente e meu processo terapêutico. Era arte. Era terapia também. Era Arteterapia pura.

Passado o susto, foquei na exposição: a finalização e acabamento das obras; a burocracia do espaço cultural; a contratação do coquetel e garçom; a curadoria e o projeto da exposição; o transporte e a montagem e o mais difícil de tudo: colocar preço nas obras. A terapia virou negócio.

Depois da primeira mostra, uma certeza: o inconsciente coletivo é bárbaro.

O meu, o teu e o nosso inconsciente se revelam entre cores e formas.

Os Diálogos do Inconsciente prometem uma conversa interessante.

Venha também.

Eu e Sinapses

Eu e a tela Sinapses (vendida em Florianópolis)

 

Diálogos do Inconsciente

Meu primeiro contato com a arte da pintura aconteceu em 1996.

Durante 4 anos pintei em ateliê de pintura

fazendo releituras de artistas conhecidos e famosos.

Passados 15 anos,

retomei a pintura, com a certeza de não frequentar nem escola, nem professor,

nem estudar técnicas de pintura.

Em 2013, fiz sem-saber-sabendo-apenas-sentindo, minha primeira drip painting.

O resultado?

Absolutamente a minha cara. Amei.

Se domino a pintura hoje? Não, ainda não.

Somos – a pintura e eu – complexos demais.

Tenho, assim como Pollock teve, dúvidas:

“Isto é uma pintura?”

Perguntou Pollock a Lee Krasner,

influente pintora expressionista abstrata da segunda metade do século XX.

Cada uma das 30 telas pintadas nestes últimos 4 anos, refletem exatamente quem sou.

Como estou. Como me transformei. Como continuo mudando.

As mais de trinta telas produzidas, são

Diálogos do Inconsciente.

Num belo dia de sol, numa semana qualquer, um grito surdo quer ser ouvido:

uma lona preta estendida, várias telas esparramadas, latas, bisnagas e restos de tinta, tubinhos de xadrez líquido, cola, pinceis, varetas, água, thinner, frascos

e um universo esperando por cores,

formas diluídas, desconexas e

infinitamente harmoniosas.

A cor sempre se apresenta.

Na hora de pintar as cores se sobrepõe e se absorvem.

Elas brincam entre si e eu com elas.

Ao movimentar a tela, movimento a tinta, movimento o corpo

e a força escorre líquida.

Ela envereda por cumes e precipícios.

Escorre de lado a lado, de cima a baixo,

até encontrar

o ponto estranho de deformada simetria.

A forma perfeita.

Como sei disso?

Não sei. Apenas sinto.

Pollock, Jung e eu – A pintura como método arteterapêutico – Linguagens do Inconsciente

“A pintura permite que o “invisível se torne visível”. (Paul Klee)

RESUMO

O presente artigo visa estabelecer uma relação entre a arte abstrata, o círculo psico-orgânico criado por Paul Boyesen e a psicologia analílita de Carl Gustav Jung. Para tanto, busca na arte e na vida do pintor norte-americano Jackson Pollock algumas referências quanto ao processo psicológico que desencadeia um tipo especial de arte, com uso específico de técnicas e materiais como forma de expressão. A autora deste artigo, assim como Pollock, utilizou-se dos mesmos recursos artísticos, como forma de expressão e busca de resolução egóica. A profusão dos trabalhos pictóricos e o bem estar psíquico conquistados – tanto pela forma, como pela intensidade artística – confirmaram a importância da arte com fins terapêuticos, através da linguagem e expressão do Inconsciente.

Palavras Chave: Arteterapia; Pintura Abstrata; Jackson Pollock; Carl Gustav Jung; Círculo Psico-orgânico – Paul Boyesen

ABSTRACT

The present article seeks to establish a connection between abstract art, the psycho-organic circle created by Paul Boyesen and Carl Gustav Jung’s analytic psychology. To achieve so, the author looks into the art and life of the American painter Jackson Pollock, in reference to the psychologic process that triggers a special kind of art, using specific techniques and resources as a form of expression of the uncounsious world of the artist. The author of this article, just like Pollock, has made use of the same artistic resources, as a form of expression and search for ego resolution. The achievement of pictorial works and psychic well being profusion – both by form and artistic intensity – have confirmed the importance of art for therapeutic purposes, through the language and expression of the unconscious mind.

 Keywords: Art therapy; abstract painting; Jackson Pollock; Carl Gustav Jung; psycho-organic circle; Paul Boyesen

 

INTRODUÇÃO

“Pollock , Jung e eu – a pintura como método arteterapêutico” – é o relato de uma experiência pessoal vivida durante um período de grandes mudanças e adaptações pessoais. Uma casa nova, num lugar absolutamente novo, uma nova condição de vida pessoal (menopausa) e conjugal (aposentadoria do marido), o distanciamento dos filhos (Ninho Vazio) e todos os desafios próprios do desenvolvimento normal do ciclo vital humano.

Neste ínterim, a pintura clássica cedeu lugar à pintura abstrata de forma inconsciente e intuitiva, tornando-se uma ferramenta arteterapêutica essencialmente autodidata. O único objetivo, a expressão e a vazão de emoções e sentimentos obscuros e efervescentes. A manifestação majestosa e inequívoca do Inconsciente.

Passados quatro anos, mais de 20 telas produzidas, o ciclo pictórico se fecha. O ciclo psico-orgânico de Paul Boyesen avança e cede lugar a um novo movimento, a uma nova etapa de vida.

Um novo ciclo se inicia. Uma nova necessidade se apresenta.

Ao relato deste processo pessoal serão anexadas fotos de doze telas produzidas, referencial bibliográfico sobre a terapêutica contida no uso de tintas e outros materiais plásticos, e por fim, uma conclusão pessoal sobre a vivência deste processo arteterapêutico.

DESENVOLVIMENTO

A pintura e a arte tem sido constantes em minha vida.

Meu primeiro contato com a arte da pintura aconteceu em 1996.

Na época, estava me adaptando a viver numa nova casa, numa nova cidade.

Um novo fazer se anunciava.

Novas formas de relação aconteciam.

Era a vida dando mais uma guinada.

Durante 4 anos pintei em ateliê de pintura com orientação de professores, fazendo cópias de artistas conhecidos e famosos.

Passados 15 anos,

retomei a pintura em 2013,

sabendo que não iria frequentar nem escola, nem professor,

nem estudar técnicas de pintura.

De todas as artes, a pintura é a arte menos dominada.

Algo de muito misterioso acontece, pois sempre, absolutamente sempre, perco a mão.

Do período em que pintei em atelier de pintura, sinto-me uma fraude.

As pinceladas mais marcantes são das professoras que tentavam me ensinar a pintar.

Nunca aprendi. Mas, queria pintar.

Queria cor na minha vida.

Quando decidi pintar uma tela para a adega de outra casa nova, comecei carimbando a tela com o fundo de garrafa molhado de vinho + placas de madeira de caixas de vinho.

Ao olhar para a tela, a certeza de que aquele troço definitivamente

não era para mim.

A vontade era de jogar tudo no lixo.

O que quer que eu fizesse com aquela tela detonada não mudaria o pior destino dela.

Com restos de tintas, fiz sem-saber-sabendo-apenas-sentindo, minha primeira drip painting.

O resultado?

Absolutamente a minha cara.

Amei. Minha família amou. Os amigos também.

A tela da adega abriu a porteira para muitas outras.

Algo em torno de 20 telas foram produzidas desde então.

Se domino a pintura hoje? Não, ainda não.

Tenho, assim como Pollock teve, dúvidas:

“Isto é uma pintura?”

Perguntou Pollock a Lee Krasner,

influente pintora expressionista abstrata da segunda metade do século XX.

O que pinto são pinturas?

Também me questiono ao admirar minhas telas.

Sinto que sim.

Minha pintura é uma deliciosa brincadeira com cores e tintas.

O resultado agrada e alegra.

Não me sinto mais uma fraude.

Cada uma das 20 telas pintadas nestes últimos 3 anos, refletem exatamente quem sou.

Ou melhor, como estou. Como me transformei.

Como continuo mudando.

Carter & McGoldrick (1995) afirmam que o ciclo de vida individual acontece dentro do ciclo familiar, que é onde acontece todo desenvolvimento humano.

Nos pontos de transição da vida familiar, que coincidem com as crises de desenvolvimento do indivíduo, surgem frequentemente impasses e bloqueios, desencadeando sintomas emocionais ou mesmo quadros psiquiátricos.”(Eizirik, Kapczinski & Bassols, 2001, p.60)

“A meia-idade é uma fase do ciclo vital que se estende aproximadamente dos 40 anos aos 60 anos … Resumir e reavaliar são características marcantes do período, mesmo quando não levam a quaisquer mudanças notáveis.” .”(Eizirik, Kapczinski & Bassols, 2001, p. 159)

Nesta fase ocorrem mudanças nas condições físicas (saúde, vigor) extremamente variáveis de uma pessoa para outra. As mulheres entram na menopausa. As capacidades mentais atingem o auge. A produção criativa pode declinar, mas melhorar em termos qualitativos. Para alguns, o sucesso na carreira e o sucesso financeiro atingem o topo. Para outros, pode ocorrer esgotamento ou mudança de carreira. A responsabilidade pelo cuidado dos filhos, o lançamento destes ao mundo, bem como a entrada de seus cônjuges e netos, e o cuidado dos pais idosos, podem tornar este período particularmente difícil. A saída dos filhos deixa o Ninho Vazio. Em um estudo de 1978, Harkins determinou que os efeitos do Ninho Vazio, em mulheres ditas “normais” costumam ser leves e desaparecem em torno de dois anos. A maior ameaça ao bem-estar feminino neste período é ter um filho que não consegue se tornar independente no momento esperado.

Atualmente, os pais lançam seus filhos ao mundo quase vinte anos antes de aposentar-se, sendo imprescindível que encontrem outras atividades e ocupações. Em algumas famílias este é um período de fruição e conclusão. Uma segunda oportunidade para explorar novas possibilidades e novos papeis. Em outras famílias, pode ocorrer o rompimento e um sentimento de vazio e perda esmagadora, depressão e desintegração geral. O ajustamento conjugal torna-se central e essencial, podendo exigir novos arranjos e combinações. Alguns casais aceitam alegremente a meia-idade e vivem através dos filhos e netos, enquanto outros sentem que o “mundo os chama”.

Para as autoras Carter & McGoldrick (1995), as mulheres estão mais expostas à mudanças e instabilidades em suas vidas, do que os homens, e são mais vulneráveis aos estresses do ciclo vital, em virtude do seu maior envolvimento emocional e afetivo com aqueles que a cercam. Habitualmente, cabe às mulheres atenderem às necessidades dos outros: primeiro dos homens, depois das crianças e depois dos idosos. São consideradas mais responsivas a uma rede maior de pessoas pelas quais sentem-se responsáveis.

As autoras delineiam seis estágios de desenvolvimento no ciclo vital de toda e qualquer família. Elas citam os seguintes estágios:

  1. Saindo de casa: jovens solteiros;
  2. A união de famílias no casamento: O novo casal;
  3. Famílias com filhos pequenos;
  4. Famílias com filhos adolescentes;
  5. Lançando os filhos e seguindo em frente;
  6. Famílias no estágio tardio da vida.

TABELA 1 – OS ESTÁGIOS DO CICLO DE VIDA FAMILIAR

Captura de Tela 2017-08-18 às 23.53.47

Fonte: Carter& McGoldrick, 1995 p. 17

“Dado seu papel fundamental na família e sua dificuldade para estabelecer funções concorrentes fora dela, talvez não surpreenda que as mulheres tenham sido as mais propensas a desenvolver sintomas nas transições do ciclo de vida.”(Carter&McGoldrick, 1995, p.14)

As mais de vinte telas produzidas nos últimos anos,

nada mais são do que

Diálogos do Inconsciente.

Num belo dia de sol, numa semana qualquer,

um grito surdo quer ser ouvido.

uma lona preta estendida no subsolo de casa, várias telas esparramadas, latas, bisnagas e restos de tinta, tubinhos de xadrez líquido, cola, pinceis, varetas, água, thinner, frascos

e um universo esperando por cores e formas diluídas, desconexas e infinitamente harmoniosas.

“Historicamente, a Arte tem sido um canal para expressar a emoção e a alma. A pintura é uma das mais velhas expressões da nossa espécie … Muito antes que a linguagem fosse registrada, temos evidência da arte rupestre, datando de aproximadamente 50.000 A.C.”( Bello, 1998, p. 24)

Para Susan Bello, a pintura espontânea é um portal que permite acessarmos uma dimensão potencial da mente que não é controlada pelo conhecimento racional. A pintura espontânea é um processo de autoconhecimento. Através de imagens simbólicas o pintor expressa sua energia latente.

“Na arte arquetípica, é o símbolo que dirige o pintor; o pintor não tem nenhuma ideia do conteúdo que será pintado. As imagens interiores aparecem espontaneamente nas telas e tomam forma através das pinceladas. As pinceladas são expressão do mundo interior.” (Bello, 1998, p. 13)

Susan Bello define a arte arquetípica como um trabalho criativo, dominado por temas comuns, representados por imagens vitais e significativas, fruto da ressonância no inconsciente de quem entra em contato com o trabalho artístico. Essa arte pode ser a pintura, a dança, escultura, cinema, literatura, poesia, ou qualquer outra forma de expressão artística.

Para a autora, o processo criativo acontece quando o self obedece seu próprio ritmo de crescimento. Quando a mente consciente não é oprimida, nem controlada, a energia é ativada com tanta força que nada pode pará-la. Esta energia vai aos mais profundos recantos do inconsciente, ultrapassando o inconsciente pessoal e atingindo as bases dos arquétipos, que estimulados, se expressam através da Arte e/ou linguagens simbólicas.

Em dados momentos de nossa vida, a criatividade parece afluir quase que por si e dotar nossa imaginação com um poder de captar de imediato relacionamentos novos e possíveis significados.”(Fayga, 2013, p. 55)

Segundo a autora, estes momentos nos alimentam com inúmeras cargas emotivas e intelectuais e abrangem a totalidade de nossas vidas.

Nise da Silveira (2007, p. 42) cita Giedion que vê em toda obra de arte um documento psíquico. A autora salienta também, a importância da linguagem simbólica expressa pelo inconsciente. Linguagem essa, que pode ser decifrada e tornar-se harmoniosa, viva e bela, reverberando em verdadeiras obras de arte.

“ Uma das funções mais poderosas da arte – descoberta da psicologia moderna – é a revelação do inconsciente, e este é tão misterioso no normal como no chamado anormal.” (Nise da Silveira, 2015, p. 16)

Nise da Silveira (2007, p. 42) cita Herbert Kuhn que distingue a arte dos sentidos da arte da imaginação. A arte dos sentidos se relaciona à percepção do mundo. Já a arte da imaginação exprime fantasias e experiências internas do artista, que as apresenta de maneira irrealista, onírica e abstrata. Ou seja, pintar o que vemos diante de nós é uma arte muito diferente de pintar o que vemos dentro de nós.

“As imagens internas são tão vivas e fortes que até parece que um projetor as lançou sobre o papel ou a tela e o indivíduo apenas lhe dá contorno com o pincel, tão concentrado ele fica e rápido é seu trabalho.” (Nise da Silveira, 2015,p. 145)

Neste contexto, Nise acredita que expressar as emoções pela pintura é um excelente método para confrontá-las, independente de sua qualidade estética. Importa propiciar à imaginação oportunidade para desenvolver-se livremente, permitindo que o indivíduo participe ativamente dos acontecimentos imaginados.

Fayga complementa afirmando que quando o indivíduo consegue expressar criativamente suas necessidades interiores, ele torna sua vida mais rica e significativa. A autora sugere que o resultado final da criação, mesmo que influenciada pelo conhecimento consciente, é absolutamente intuitivo. A consciência do processo intuitivo acontece quando damos forma à criação.

“Os processos de criação ocorrem no âmbito da intuição. Embora integrem, como será visto mais adiante, toda experiência possível ao indivíduo, também a racional, trata-se de processos essencialmente intuitivos.” (Fayga, 2013, p. 10)

Sara Paim afirma o quanto é importante compreender e diferenciar o uso da “abstração” como busca plástica, ou como “camuflagem”. Um mecanismo psíquico para não se expor.

Para Nise da Silveira o uso da abstração é a forma do homem encontrar tranquilidade e refúgio, num cosmos confuso e instável. Entre o mundo externo e o mundo interno do ser humano surgem fronteiras intransponíveis.

“Esses dois mundos interpenetram-se em graus diferentes. Isso ocorre a cada instante na vida cotidiana e torna-se particularmente manifesto nas obras de arte, plásticas e literárias.” (Nise da Silveira, 2007, p. 119)

e conclui:

“Certamente a linguagem abstrata presta-se a dar forma a segredos pessoais, satisfazendo uma necessidade de expressão sem que outros os devassem.” (Nise da Silveira, 2007, p. 22)

e

“O artista não domina o ímpeto da inspiração que dele se apodera. Obedece e executa, “sentindo que sua obra é maior que ele e, por esse motivo, possui uma força que lhe é impossível comandar.”(Nise da Silveira, 2007, pg 139)

Fayga sugere que não há certo, nem errado no fazer do artista. Nem mesmo ele consegue explicar o porquê de suas ações e decisões. Ele se sente impulsionado por uma força interior que o orienta como uma bússola.

Esta lhe diz: vá adiante, revise, ajunte, tire, acentue, diminua, interrompa! São ordens que, ao recebê-las, o artista sente como imperativas, às quais deve irrestrita obediência, tão absolutamente essenciais se revelam a seu próprio ser.”(Fayga, 2013, p. 71)

“O impulso criativo é tão poderoso quanto o impulso sexual para o nascimento de uma nova vida.” ( Bello, 2014, p.110)

Susan Bello afirma que uma vez estimulados, nossos símbolos inconscientes podem se expressar através de várias formas. Ela cita a pintura espontânea. A espontaneidade permite que nossos símbolos pessoais inconscientes se expressem em qualquer forma necessária para aquele individuo, sem influência externa. Estes símbolos contêm e transformam a energia. Eles são potencial puro em busca de realização. O símbolo, tem significado único, uma vez que entra em contato com o inconsciente de cada indivíduo.

Nise da Silveira (2007, p. 147) cita Jung que afirma que

O processo criador, na medida em que o podemos acompanhar, consiste numa ativação inconsciente do arquétipo, no seu desenvolvimento e sua tomada de forma até a realização da obra perfeita.”

Para a autora, a verdadeira e genuína obra de arte, é uma produção impessoal.

“O artista é “um homem coletivo que exprime a alma inconsciente e ativa da humanidade.”(Nise da Silveira, 2007, p. 143)

Segundo ela, o surgimento de certas ideias e imagens que aparecem nos sonhos e fantasias, podem ser análogas a vários mitos, contos e fábulas, aparecendo também em outros produtos da criatividade humana. As imagens arquetípicas não são herdadas. O que é herdado e inato é a disposição de configurar e dar significado a estas imagens, que mantém semelhanças em seus traços fundamentais, mas assumem uma nova roupagem conforme a época e situações em que reaparecem. Desta forma, a criança ao nascer, traz consigo o rascunho de sua individualidade futura, embasada nos alicerces da imaginação, sentimento e ação, comuns à toda humanidade.

“Devido a seu caráter universal, Jung denominou estas camadas mais profundas da psique inconsciente coletivo, e arquétipo às disposições herdadas para produzir imagens e pensamentos similares em toda parte do mundo e em todas as épocas.” (Nise da Silveira, 2015, p. 148)

Fayga afirma que o potencial de criação do homem é movido por necessidades sempre novas. Este potencial seria um fator de realização e constante transformação.

Para Nise da Silveira (2007, p. 139) cada artista experiencia o processo criador de um jeito próprio. Ela cita Picasso que diz: “Quando eu começo uma pintura, há alguém que trabalha comigo. No fim, tenho a impressão que estive trabalhando sozinho, sem colaborador.”

Susan Bello (1998, p. 12) cita Joan Miró, que relatou seu processo como pintor, numa entrevista em 1947. Segundo ele, no primeiro estágio, ele deixa qualquer ideia – ou pincelada que sugira uma ideia – aparecer espontaneamente. Já o segundo estágio é cuidadosamente planejado e calculado, de acordo com as regras de composição.

Pollock afirmava não ter consciência do que estava fazendo enquanto pintava. À medida que se familiarizava com sua pintura é que a percebia como tal. Pollock acreditava que a pintura tinha vida própria e precisava deixá-la revelar-se. Só quando ele perdia o contato com ela é que percebia o caos e a confusão. Do contrário, o resultado final de sua arte era “pura harmonia, um dar e receber fácil, e a pintura sai bem.” (Emmerling, 2008, p. 65)

Pollock revolucionou o conceito de arte na segunda metade do século 20. Foi influenciado pela pintura em areia dos índios americanos e pelos pintores mexicanos de afrescos. Em 1936 pintou telas violentamente expressionistas. Inventou processos originais aplicando imensas telas contra a parede ou no chão. Em vez de usar pincel e paleta, praticava o dripping  passeando sobre a tela com latas furadas, de onde escorria tinta. Criador da Action Painting, Jackson Pollock encarnava a fúria de uma raça embriagada por grandes espaços e afetou não só artistas jovens, mas toda uma geração de pintores contemporâneos, inclusive mais velhos. Pollock travou uma grande batalha contra o alcoolismo e a depressão. Alguns viam nele apenas um criador de peças caóticas e isentas de sentido – a Revista Time chegou a apelidá-lo de Jack, o Gotejador. Outros, aclamaram-no como o mais promissor e impressionante pintor da América. Nasceu em 1912 e morreu em 1956, aos 44 anos, num acidente de carro. Ele também acreditava que a pintura era a forma do artista exprimir seu mundo interior (sua energia, impulsos e outras forças interiores).

“Mais que representar alguma coisa, a obra criativa representa seu autor, uma época, uma cultura.” (Sara&Jarreau, 1996, p. 43)

O estilo é a essência de uma pessoa, sua integração, sua própria coerência interior. Dentro de um estilo o indivíduo desenvolve sua personalidade, se estrutura e estrutura sua obra.

Dentro de seu estilo, pois, o indivíduo cria. Transformando-se quantas vezes for necessário, poderá renovar as formas e renovar a si próprio, sem jamais se violentar.”(Fayga, 2013, p. 141)

Do ponto de vista junguiano a psicologia pessoal do artista ou seus conflitos pessoais até podem esclarecer características de sua obra, mas não as explica. Para Jung, a problemática individual, tem tanta relação com a obra artística do autor quanto o solo tem com a planta semeada e germinada.

A cor sempre se apresenta.

Nada de beges, um pouco de cinza e muito de vermelho, amarelo, azul, verde, laranja.

Preto e branco são básicos. Não vivo sem eles.

Na hora de pintar, as cores se sobrepõe,

se misturam,

se absorvem.

As cores brincam entre si e eu com elas.

Ao movimentar a tela, movimento a tinta,

movimento o corpo

e a força escorre líquida.

Ela envereda por cumes e precipícios.

escorre

de lado a lado, de cima a baixo,

até encontrar

o ponto estranho de deformada simetria.

A forma perfeita.

Como sei disso?

Não sei. Apenas sinto.

“A forma está ligada ao movimento enquanto a cor é somente sensação. A forma apela à abstração, ao reconhecimento do objeto, enquanto a cor provoca a sensibilidade e a intuição. A forma evoca o gesto, a cor traduz a emoção.” (Pain&Jarreau, 1996 p. 99)

Paul Boyesen, cita o modelo fenomenológico do Círculo Psico-Orgânico como referencial tanto para a trajetória de vida como para circulação energética do indivíduo, vinculando sua experiência psíquica e corporal. Segundo ele, o círculo divide-se em nove pontos: Necessidade, Acumulação, Identidade, Força, Capacidade, Conceito, Expressão, Sentimento e Orgonomia.

Toda vez que o círculo se fecha, abre-se novamente. O que determina esta constância são novas necessidades que surgem inexoravelmente durante todo o desenvolvimento humano. O primeiro ponto, a Necessidade, representa ouróboros, a completa fusão e a dependência. O eu-não eu, o meu-não meu, o dentro – o fora são apropriados, assegurando ao ego a certeza e a constância, a sensação de bem-estar e da própria existência. A Acumulação surge com esta apropriação, e consequente sentimento de posse. Ao se apropriar da energia e de tudo que é seu (seu território, corpo e conteúdos internos) ele começa a estabelecer trocas com o meio externo, dando e recebendo. De posse de si mesmo (corpo) vivencia a Identidade, expandindo-se com total autonomia. O quarto ponto, a Força, surge quando o indivíduo percebe a própria força e a canaliza para ações específicas. Introjetando limites e regras, entra em contato com potencialidades e possibilidades. Na Capacidade, a energia criativa flui livremente. Tudo são possibilidades. Na hora de optar, de escolher conscientemente e de confrontar-se com a realidade, o Conceito define o que fazer. A escolha de uma possibilidade, exclui todas as outras possibilidades. O indivíduo passa da idealização ao concreto. No mundo real, expressa seus desejos. A Expressão é a concretização do desejo, independente da reação do outro. Assim, ele vivencia o Sentimento, conectado à ação decorrente de como foram vivenciados todos os pontos anteriores do círculo. Chega o momento de usufruir dos frutos de sua realização e vivenciá-los com satisfação. É quando se permite o encontro com o outro, e a este, se entrega, podendo fundir-se; porém, sem perder sua identidade. O momento pode ser de vulnerabilidade, pois há abertura para o outro. Atingindo a Orgonomia o indivíduo se percebe como parte de um todo maior. A sensação é de pertencimento. Quase um retorno ao estado original de completude, com a vivência do todo, mas com a consciência de si próprio. O Círculo se fecha. E se abre, tão logo surge uma nova Necessidade.

Segundo a Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung o desenvolvimento psicológico tem início a partir de um estado de indiferenciação, também conhecido como Ouróboros (correspondente ao ponto 1 da Necessidade, do Círculo Psico-Orgânico).

Ouróboros ou Oroboro é a representação de uma criatura mitológica, uma serpente que engole a própria cauda formando um círculo que simboliza o ciclo da vida, o infinito, a mudança, o tempo, a evolução, a fecundação, o nascimento, a morte, a ressurreição, a criação, a destruição, a renovação. Muitas vezes, esse símbolo antigo está associado à criação do Universo.

Ana Luísa Batista (apostila) descreve Ouróboros como o “redondo que contém.” É onde os opostos (pai/mãe, macho/fêmea, início/fim) se unem. Tudo é envolvente e contém, circunda, protege, preserva e nutre.” Neste estágio inicial, o Inconsciente é absoluto. Vivencia-se o caos onde tudo existe sem forma específica.

Susan Bello afirma que depois que as camadas mais inconscientes são acessadas, torna–se importante integrá-las na estrutura do ego. Com o caos, abre-se ao indivíduo a possibilidade de que um colapso na sua atitude consciente possa ser substituído por uma nova integração num nível mais básico da psique. Caso se obtenha isso, significa que a consciência foi trazida para uma relação mais íntima com o inconsciente, e que uma nova atitude consciente está em uma base mais sólida.

“O ego precisa entender que o caos e a desestruturação são parte natural de seu processo de transformação.(Susan Bello, 1998, p. 29)

Para a autora, o artista, pessoa criativa ou qualquer um com suficiente estrutura de ego pode mergulhar fundo “no oceano escuro do inconsciente” e voltar à tona com uma nova visão de seu mundo interno.

Susan Bello (1998, p. 156)) cita J. Van Eenwyk que afirma: “A combinação da linguagem de Jung com a Teoria do Caos leva a uma interessante descrição sobre o processo de individuação: quando a tensão entre o consciente e o inconsciente atinge um certo nível crítico, o caos entra na dimensão psíquica … Se ao caos é permitido continuar (a tensão entre os opostos continua), padrões reconhecidos (símbolos/fractal attractors) aparecem eventualmente. Esses padrões representam a emergência da ordem do caos e, se interpretados corretamente, dão insight sobre o status do processo.”

“Na representação plástica do adulto as imagens que chegam neste momento, em geral, não têm forma. São indiferenciadas – tudo se mistura: não há estrutura, tempo e espaço. Quando figurativo, encontram-se imagens referentes às profundezas: abismos, vales, fundo do mar, lagos, poços, interior da terra, mundo interior, caverna, casas, ninhos, conchas … Compartimentos que têm a finalidade de envolver para proteger e lugares de refúgio onde a vida concentra-se para se transformar.” (Apostila de Formação em Arteterapia, Ana Luisa).

Para Ana Luísa Batista, as técnicas que favorecem este momento nas artes plásticas, são os trabalhos com manchas, indiferenciadas e sem formas figurativas. São técnicas que favorecem a projeção de conteúdos inconscientes: vê-se fora o que está dentro. Não existe controle sobre a atividade em si, nem sobre o resultado final. Cabe ao sujeito somente acompanhá-las.

“A pintura é sempre uma questão de escolhas. Essas se fazem ao nível da composição, das linhas, dos ritmos, das cores (dominantes que recobrem a tela), dos valores, dos contrastes, do movimento, do estilo, por um lado ligados à época e, por outro, à personalidade de seu autor.” (Pain&Jarreau, 1996, p. 80)

Pain&Jarreau relatam a importância de observar o uso insistente de determinadas cores ou sua ausência, os tons mais importantes – aqueles capazes de emocionar promovendo ressonância ou associação com experiências vividas. Importa observar como o indivíduo rompe a angústia da tela em branco e a emoção despertada: de uma maneira agressiva, tímida, íntima, tônica, irônica, compulsiva, antecipadora. O primeiro toque marca o ponto de origem: central ou periférico. A partir do início, uma cadeia de significações vai surgindo. Que tipo de toque é mais usado (traços longos ou pequenos), continuidade de orientação, relações entre a forma e a cor, a utilização de cores puras ou o uso de nuances (+ preto, + branco, + outra cor) bem como a utilização de cores quentes ou frias para os “fundos” das telas, sombras, espaços vazios, brilho, profundidade, etc. O significado estético do uso de determinadas cores pode implicar, nada mais , nada menos, apenas o estilo e a intenção de expressão mais realista, simbólica, abstrata ou decorativa.

Geralmente, classificam-se as cores em “quentes” e “frias”. Elas transmitem a sensação de calor ou de frio. Vários estudos comprovam que as cores têm um efeito psicológico nas pessoas e por esse motivo, diferentes cores são usadas para despertar sentimentos e estados de espírito. Cores quentes como o vermelho, laranja e amarelo remetem à luz solar, ao calor, ardor e processos de adaptação. São excitantes e estimulantes. Já as cores frias como o roxo, azul e verde são associadas ao mar e ao céu, e têm efeito calmante.

“Essa distinção é, no entanto, enganosa, considerando-se que a criatividade emerge dos conflitos e das compensações.” (Pain &Jarreau, 1996, p. 102)

Jung associa as cores às principais funções psíquicas do homem:

  • O azul é a cor do céu, do espírito. É a cor do Pensamento;
  • O vermelho é a cor do sangue. Paixão e Sentimento;
  • O amarelo é a cor da luz. Ouro e Intuição;
  • O verde é a cor da natureza, do crescimento. Função Sensação.

“O primeiro caráter do simbolismo das cores é sua universalidade, não só geográfica mas também em todos os níveis do ser e do conhecimento, cosmológico, psicológico, místico, etc. As interpretações podem variar.” (Chevalier&Gheerbrant, 2001, p. 275)

Mesmo com diferentes interpretações, as cores permanecem como fundamentos do pensamento simbólico. Determinadas cores representam os elementos da natureza:

  • Fogo: vermelho, laranja;
  • Água: verde;
  • Ar: amarelo, branco;
  • Terra: preto, marrom.

As cores opostas, como o preto e o branco simbolizam o dualismo intrínseco do ser. O preto, tempo; o branco, o intemporal; e tudo que acompanha o tempo; escuridão e luz; fraqueza e força; sono e vigília. O preto representando as forças noturnas, negativas e involutivas; e o branco, as forças diurnas, positivas e evolutivas. O Yin e o Yang.

Para Jung, o preto representa as germinações, origens, começos. Simbolicamente, é mais compreendido como frio e negativo. É cor do luto, indicando uma ausência a ser preenchida, uma falta provisória. É a cor da Substância Universal, da prima matéria, da indiferenciação primordial, do caos original, das águas inferiores … possuindo incontestavelmente, um aspecto de obscuridade e impureza. Ausência de toda cor, de toda luz. O preto absorve a luz e não a restitui. Evoca o nada, as trevas terrestres da noite, o mal, a angústia, o inconsciente e a Morte. Enquanto imagem de morte, de sepultura, terra, travessia noturna, liga-se à promessa de uma vida renovada e terra fértil.

O branco é absoluto. Ora significa a ausência, ora a soma das cores. É uma cor usada em ritos de passagem pois expressa as transformações conforme esquema básico de iniciação: morte e renascimento. Em todo pensamento simbólico, a morte se antecipa à vida e todo nascimento é um renascimento. O branco também é usado como cor de morte e luto. E também como cor da pureza. Para o pintor W. Kandinsky, o branco tem para nossa alma o mesmo efeito que o silêncio absoluto.

O azul é a mais profunda e fria das cores. É o caminho ao infinito, onde o real se transforma em imaginário. Imaterial em si mesmo, a azul desmaterializa tudo aquilo que nele toca. As formas desaparecem, afogam-se nele e somem como um pássaro no céu. O azul resolve em si mesmo as contradições e alternâncias (dia/noite) que dão ritmo à vida. Indiferente, ele se basta. Sugere a ideia de uma eternidade tranquila.

O vermelho é universalmente conhecido como símbolo do Princípio de Vida, com sua força, poder e brilho. Cor de fogo e sangue. Conforme sua tonalidade clara ou escura, reflete sua ambivalência simbólica. O vermelho claro é macho, diurno e tônico incitando à ação, lançando como o sol, sua força e seu brilho sobre todas as coisas. Já o vermelho escuro é feminino, noturno e expressa o mistério da vida. O vermelho leva em si os dois mais profundos impulsos humanos: ação e paixão, libertação e opressão.

O amarelo é a cor da eternidade, assim como o ouro é o metal da eternidade. Ambos são base para rituais cristãos. É intenso, violento, agudo e estridente, amplo e cegante. É a mais quente, expansiva e ardente das cores. Para os chineses, o amarelo emerge do negro, assim como a terra emerge das primevas águas. Cor do Imperador, o amarelo é central no Universo, assim como o sol é central no céu. Para Kandinsky, o amarelo é a mais divina e terrestre das cores. Já o poeta Mario Quintana questiona: “Se não fosse o Van Gogh, o que seria do amarelo?”

O alaranjado é a cor a meio caminho entre o amarelo e o vermelho e simboliza o ponto de equilíbrio entre o espírito e a libido. Equilíbrio este, difícil de ser conquistado. Pode expressar ou a revelação do amor divino (túnica cor de açafrão dos monges budistas), ou o emblema da infidelidade e luxúria (o que remonta aos cultos da Terra-Mãe, onde o equilíbrio era buscado através de orgias e rituais de iniciação).

O verde é a cor do reino vegetal, o despertar da vida. É refrescante, tranquilizadora, humana e tonificante. É a cor da esperança, da força e longevidade. Cor da imortalidade, representada universalmente pelos ramos verdes. O verde é uma cor feminina, reflexiva e centrípeta. Situado entre o amarelo e o azul, o verde resulta de interferências cromáticas. E entra com o vermelho num jogo simbólico de alternâncias, conservando um caráter estranho e complexo, que provem da sua polaridade dupla: o verde do broto e o verde do mofo, a vida e a morte. É a imagem das profundezas e do destino.

“Na realidade trabalha-se com poucas cores. O que dá a ilusão do seu número é serem postas no seu justo lugar.”(Pablo Picasso)

O tempo passou.

Passou o tempo de pollockar.

Mais um ciclo se fecha,

enclausurado e enrolado em si mesmo.

Orgonomia? Ciclo Cósmico?

A Totalidade Psíquica.

Sinto a alegria da Criança Interior

escalando montanhas, percorrendo vales, mergulhando de ponta cabeça em abismos

de cores e formas, texturas,

linhas e palavras.

Pintar é brincar. É pollockar.

No horizonte, nada à vista.

Ainda.

CONCLUSÃO

Entender como e porque a pintura pode ser um recurso artístico utilizado para atravessar períodos conturbados e caóticos, neste eterno movimento que é a vida, pode ser esclarecedor e profícuo a seu uso terapêutico.

Diferentemente do que aconteceu em 1996, meu retorno ao universo das tintas em 2013, revelou um EU mais complexo, num momento confuso e desestruturado. Pintar sem orientação profissional ou modelo a ser seguido, parece demonstrar maior segurança interior, uma autocrítica reduzida e uma necessidade retumbante de expressão. A escolha de telas imensas também.

Romper o branco de uma tela de 0,30m X 0,60m é bem diferente de romper o branco de uma tela de 1,50m X 1,50m. Ao me deparar com o tamanho da tela, além do medo e do desafio, a certeza de conseguir dominar aquele espaço.

As primeiras camadas das telas são em tinta acrílica – diluível em água –gotejadas, e depois, escorridas. A finalização, sempre é feita com tinta esmalte (brilhosa, não diluível em água) e segue o acaso e a força. Ambos determinam a quantidade de tinta, direções e formas dos traços finais na tela. Quando a forma não agrada, a tela é girada. Às vezes, os quatro lados. A tinta acrílica e a tinta esmalte escorrem e se misturam. Depois, a tela é colocada para descansar. Ela e a tinta, precisam secar. Por último, vem o acabamento. Força e paciência determinam onde os pontos amarelos, pretos e vermelhos precisam estar. A tinta esmalte escorre, e onde ela para, é onde deve ficar.

As primeiras telas foram trabalhadas sobre o fundo branco. O branco, como ausência e soma das cores. Como morte e renascimento. O silêncio absoluto. A sobreposição de camadas de tintas demonstra experimentação, insatisfação e busca. O processo, inicialmente demorado permite infinitas possibilidades. No fundo da tela, as sombras se compõe. São desconhecidas ainda.

Com o tempo, o fundo das telas passou a ser preparado com as próprias mãos. Sem pressa. O momento é de devaneio e introspecção. O contato com a tinta cria uma conexão íntima e prazerosa. O azul escuro foi a cor escolhida. A mais profunda e fria das cores. Caminho ao infinito, onde o real e o imaginário se misturam. Azul, cor do céu, do espírito e do pensamento. O pano branco da tela pede o toque repetitivo para cobrir cada poro do tecido de linho. Os escuros – as sombras – do fundo da tela, não exigem nenhuma perfeição. Servem apenas para cobrir o branco. O nada. Hora de gotejar pingos e pontos escuros e pigmentar a tela. A mistura cria um caos. A força dos braços me impulsiona no giro da tela. Acompanho a tinta escorrer. Dou o limite justo. Viro a tela de novo. E de novo. E de novo. O processo cansa. Precisa de tempo. Consenso. Calma. Espero a tinta secar e o desenho abstrato se formar. Abismos e precipícios mostram meu momento de vida.

foto tela adega

Figura 1. “Mudança”, acrílico e tinta esmalte sobre tela 1,00 X 1,50m

A primeira tela – a da adega – foi experimental do início ao fim. Feita e refeita várias vezes no período de 4/5 dias foi iniciada na antiga casa – onde minha alma insiste em ficar. A busca pela forma ideal exigiu várias camadas de tinta. A ideia de uma camiseta manchada com o fundo sujo de uma garrafa de vinho e a colagem de placas de madeira de vinícolas mundialmente famosas foi a inspiração inicial. Foi finalizada com tinta acrílica branca, com rolo “compressor” de texturas, e por último, as linhas pretas, amarelas e vermelhas. Do projeto inicial, sobraram apenas as bordas, que mostram fundos de garrafas de vinho carimbadas. Todo o resto foi alterado. O estranho caos era a imagem certa. Na casa nova, reina absoluta no subsolo. Na adega. Seu nome: “Mudança”.

foto tela bar

Figura 2. “Abismo Abissal”, acrílico e tinta esmalte sobre tela 1,50 X 1,50m

A tela (fig 2) remete ao desmoronamento. Destruição. O alto e o baixo. Das profundezas algo emerge e queima. Do alto, algo despenca, transborda: O humor. As certeza. Os afetos. O inferno. O paraíso. O amor. A tela de 1,50m X 1,50m – ainda hoje – oscila sua posição na parede. O em cima e o embaixo podem alternar-se sem maiores prejuízos estéticos ou psicológicos. A impermanência da vida e a oscilação do que sentimos e vivemos é expresso nesta tela intitulada “Abismo Abissal”. O extremo. O tudo e o nada.

A tela da lareira (Fig 3) é a tela vermelha, inacabada. “Mar em fogo”. Ela ainda espera a pintura final – com pincel – de uma gaivota ou barbatana da baleia. Negras. Voar ou mergulhar, ainda são possibilidades. Além do vermelho quase total – nuances de verde, amarelo e laranja aparecem no fundo – as ondas em relevo de massa acrílica, fazem da tela de 1,50m X 2,00m um ornamento de peso e de impacto. Ela é central na sala de estar. Voar ou mergulhar, aqui e agora, são centrais nesta nova vida, nesta nova morada. O grito não poderia ser mais vermelho. Mais cheio de paixão e ódio. Pura ambivalência simbólica. O vermelho leva em si os mais profundos impulsos humanos: ação e paixão, libertação e opressão.

tela vermelha

Figura 3. “Mar em fogo”, acrílico e tinta esmalte sobre tela. 1,50m X 2,00m

A tela da sala de jantar é “A prisioneira” (Figura 4). A sensação de aprisionamento por causa do quadriculado sobre o fundo camuflado em tons esverdeados, pretos e amarelos, que remetem à selva. A águia negra (tinta esmalte) que se formou, se desintegrou e se perdeu. Quase sumiu entre o preto e o vermelho.

tela prisioneira

Figura 4. “A Prisioneira”, acrílico e tinta esmalte sobre tela 2,00m X 1,00m

Ela ornava a parte superior da tela e escorreu no vermelho que a cercava. Ela ainda não estava pronta para existir. Assim como não estavam nem a cauda da baleia, nem as asas da gaivota. De todas, a mais amarela das telas. Intensa, violenta e estridente. O amarelo é central no Universo, assim como o sol é central no céu.

A sala de jantar como simbolismo de família. O sagrado de toda uma vida.

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Figura 5. “Sumida”, acrílico e tinta esmalte sobre tela 0,90m X 0,90m

“Sumida” mostra a diluição total. (Fig 5) O fundo do poço. Alguns pontos de luz iluminam no vasto breu da escuridão.

tela explosão

Figura 6. “Estelar”, acrílico e tinta esmalte sobre tela 0,80m X 1,20m

“Estelar” (Fig 6) é a tela que fecha o ciclo de maior diluição. É a mais colorida. O fundo negro ganha tons de azul mais claro e lilás. Os tons de rosa e amarelo contrastam com o preto e o azul. A luminosidade remete à constelações e galáxias.

“Siamesas” (Fig 7) são duas telas de 1,50m X 1,50m cada, colocadas lado a lado, também no subsolo da casa. Neste ponto do processo pictórico, cria-se uma técnica pessoal. Um estilo artístico. As duas telas precisam dar continuidade uma à outra. O mundo inconsciente e o consciente ensaiam uma integração em 4,5 metros quadrados de tela pintada.

tela irmãs siamesas artigo

Figura 7. “Siamesas”, acrílico e tinta esmalte sobre tela 2 x 1,50m X 1,50m

Nesta mesma época, faço a única reforma em uma tela. A Fig 8 fazia par com a Fig 2. Antes ela era uma extensão da tela Abismo Abissal. Ela precisava de um novo movimento. Precisava se diferenciar daquele primeiro momento. O inconsciente e o consciente, o em cima e o embaixo se comunicam com tentáculos azuis. Conexões emergem das profundezas.

Untitled

Figura 8 “Conexões” acrílico e tinta esmalte sobre tela 2,00m X 1,50m

Uma longa pausa demarca um novo momento.

“Fuga”(Fig 9), “Candelabro”(Fig 10), “Flowers”(Fig 11), “Nana Nenê”(Fig 12) e “Abismo Sideral”(Fig 13) são a última produção de pintura espontânea. Cada uma inspirou uma poesia.

Fuga

“Se pudesse eu fugiria,

fugiria das grades, dos pântanos, do branco espectral.

Me confundiria com o céu azul e o vermelho alegria,

me lançaria em golfadas

para a vida, para o mundo.

Se pudesse …

Cá estou.”

foto fuga

Figura 9 “Fuga”, acrílico e tinta esmalte sobre tela 0,90m X 0,70m

Candelabros

“Queria me acertar

Pra lá me fui, pra cá me perdi.

Quem sabe mais uma camada.

Mais cores, mais amores.

Mais uma tentativa.

A perfeição que não existe.

A harmonia que insiste. Persiste.

Ficarei – por ora – perdida e deformada.

No pano de linho retangular,

Retomo as tintas. Me jogo inteira.

Candelabros azuis surgem.

A luz me abraça.

foto candelabro

Figura 10 “ Candelabro”, acrílico e tinta esmalte sobre tela 0,90 X 1,20

Flowers

“Obra prima de Deus.

Fálicas e ginecológicas.

Flores. Flowers.

Um buquê.”

foto tela espermatozoide

Figura 11 “Flowers”, acrílico e tinta esmalte sobre tela. 0,70m X 0,90m

Nana Nenê

“Nana nenê que a cuca vem pegar

Papai foi na roça, mamãe já vai chegar.”

Chegamos, os dois.

Sonhe com os anjos azuis, com o sol de amarelo.

Vibre com o vermelho e o laranja da vida.

A Sombra existe. Respeite-a.

Nana nenê.

Estaremos sempre com você.

foto tela nana nenê

Figura 12 “Nana Nenê”, acrílico e tinta esmalte sobre tela 2,10m X 0,80m

Abismo Sideral

“O céu e o inferno se querem,

se buscam, se encontram.

Dançam no ritmo da Rumba, da Salsa. Lambada. Tango.

Jamais uma Valsa.

Fazem gráficos. Tiram medidas. Avaliam-se.

Não importa o que conspira,

O que constela no vácuo,no espaço de pontos.

Estalactites, estalacmites.

A beleza do abismo. O encanto sideral.

tela espaço sideral

Figura 13 “Abismo Sideral”, acrílico e tinta esmalte sobre tela 1,50m X 1,50m

Assim como Pollock, também acredito que a pintura é uma forma de expressão do mundo interior de quem pinta. A pintura tem vida própria e é preciso deixá-la revelar-se. Para isso, a intuição é uma bússola. É ela quem orienta o que, quando e como fazer. Quando parar. Quando continuar. Que cores usar e quais não usar. Como bem assinalou Jung, os conflitos pessoais podem até esclarecer a obra do artista, mas jamais explicá-la.

Como da primeira vez, foi através das tintas e das cores que o equilíbrio pessoal foi atingido. Pelo menos, encaminhado. No primeiro ciclo pictórico, a arte dos sentidos; A cópia do mundo visto pelo olhar de pintores consagrados. No segundo ciclo, a arte da imaginação; O mundo visto e expresso através da própria imaginação. No início deste novo estágio – lançando os filhos e seguindo em frente – a constatação de um recomeço ainda sem forma específica. Os filhos partindo, o relacionamento conjugal entre a aposentadoria, os primeiros sinais da menopausa, a adaptação a um novo espaço e um novo querer que se agiganta.

Nos dois momentos (ou ciclos pictóricos) a coincidência de estar em fase de adaptação a um novo momento de vida, um novo estágio do ciclo do desenvolvimento humano. No primeiro, a adolescência da filha. No segundo momento, o próprio Ninho Vazio. Em ambos, uma casa nova para ser decorada e impregnada de personalidade.

Nas etapas transicionais ou estágios do desenvolvimento, surgem novas necessidades e objetivos a serem alcançados. Paul Boyesen cita o Círculo Psico-orgânico como modelo de como a energia transita de uma forma totalmente desestruturada (ouróboros) até atingir a orgonomia. Este processo é constante e permanente, assim como o ciclo vital. A necessidade, representada por ouróboros, é vivida pela experiência do eu – não eu, meu – não meu, a completa indiferenciação. Ao se apropriar da energia e de tudo que é seu, são estabelecidas trocas com o mundo externo. A consciência de si mesmo, leva à percepção da própria força. Das potencialidades e possibilidades que existem. A criatividade se expressa e flui livremente. Saber o que fazer define o caminho a seguir. Escolher algo real e concreto, implica excluir algum outro algo ideal. A expressão é a concretização do desejo escolhido.

A pintura que aparece desde a primeira tela demonstra esta grande confusão. Imagens sem forma e indiferenciadas que remetem às profundezas, abismos, vales, fundo do mar, espaço sideral, mundo interior, cavernas. Refúgios para proteger a vida que precisa se transformar. A abstração como mecanismo psíquico de camuflagem e a intuição fomentam a criação artística. A projeção do inconsciente acontece sem controle da atividade, nem do resultado final. Na tela, a expressão viva e incontestável do inconsciente.

A escolha e mistura das cores, a força com que a tinta é jogada e escorrida, a composição, as linhas e ritmos do que se pretende expressar, representam em parte, a personalidade do autor, em parte, seu momento de vida.

O momento inicial é de fragmentação e diluição. De adaptação a algo ainda novo e desconhecido. Com o passar do tempo – e das telas – um estilo artístico foi atingido e uma forma de equilíbrio conquistado. As poesias e as últimas telas mostram um momento de explosão e renascimento. “Fuga” e “Flowers” transmitem este movimento. “Nana Nenê” faz contraponto com “A Prisioneira”; a cantiga que ninou os filhos, nina agora a própria vida e as próprias escolhas. Os “Candelabros” iluminam mais uma tentativa em busca de harmonia. “Abismo Sideral” marca o momento atual:

A beleza do abismo. O encanto sideral. Os altos e baixos da existência humana que nos fazem escalar montanhas e mergulhar no mais fundo dos abismos da própria alma, pra voltar à tona, mais integrados e iluminados.

Sobre o estilo artístico cunhado nesta expedição interior, cito Pain&Jarreau:

“A busca de estilo constitui um processo, mais que um ponto de partida e toda fixação denota, seja um obstáculo, seja o ápice do contexto terapêutico, ou, ao contrário, o resultado de um grau de excelência.” (1996, p. 105)

 Possivelmente, um novo ciclo se inicia.

Uma nova necessidade se apresenta.

Este círculo se fecha.

Outro, haverá de abrir-se.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  1. Apostila do Ateliê Arteterapêutico – os canais expressivos e o círculo psico-orgânico: Ouróboros – Ponto 1: Necessidade. Ana Luisa Baptista
  2. Bello, Susan “Pintando sua alma – método para desenvolver a personalidade criativa”, Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1998.
  3. Bello, Susan “Pintura Espontânea – criando a jornada simbólica”, Editora Susan Bello, 2014.
  4. CARTER, Betty & McGOLDRICK, Monica As mudanças no ciclo de vida familiar: uma estrutura para a terapia familiar – 2 ed. – Porto Alegre, Artes Médicas, 1995.
  5. CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain “Dicionário dos Símbolos – Mitos, sonhos, costumes, gestos, figuras, cores, números” – 16 ed. – Rio de Janeiro, Editora José Olympio, 2001.
  6. EIZIRIC, Cláudio Laks & KAPCZINSKI, Flávio & BASSOLS, Ana Margareth Siqueira   O Ciclo da Vida Humana: Uma perspectiva Psicodinâmica.   Porto Alegre, Artmed Editora, 2001.
  7. EMMERLING, Leonhard “ Jackson Pollock – 1912 – 1956 – no limite da pintura”, Lisboa, TASCHEN GmbH, 2008.
  8. OSTROWER, Fayga Criatividade e Processo de Criação – 29º ed. – Petrópolis, Ed.Vozes, 2013.
  9. PAIN, Sara & JARREAU, Gladys “teoria e técnica da arte-terapia – a compreensão do sujeito – Porto Alegre, Artes Médicas, 1996.
  10. SILVEIRA, Nise da, “ Imagens do Inconsciente”, Petrópolis, Ed. Vozes, 2015.
  11. SILVEIRA, Nise da “JUNG – Vida e Obra”, 21º ed. – São Paulo, Editora Paz e Terra S/A, 2007.

A pintura como método arteterapêutico – Diálogos do Inconsciente

O artigo científico de conclusão do curso de Arteterapia ganha forma e conteúdo.

O tema: a Pintura como forma de expressão, uma ferramenta psicológica de alto impacto, incrivelmente prazerosa e reveladora do universo inconsciente de cada um de nós. Alguns chamam esta técnica de Pintura Espontânea, outros de Pintura Intuitiva.

Gosto de pensar que são Diálogos do Inconsciente.

Afinal, qualquer um pode praticá-la, pois não é necessário nenhum conhecimento prévio na arte pictórica. Sei do que estou falando. O resultado são telas exclusivas e cheias de personalidade. Por este motivo, decidi desbravar o que acontecia quando juntava lona preta, tinta, telas, varetas, água e pinceis + a vontade quase insana de ganhar espaço e encontrar alguma forma de revelação para minhas emoções. O resultado sempre me surpreendeu. O processo também. Entender teoricamente o que fundamenta a arte abstrata, como e porque ela acontece, foi mais que atender uma exigência acadêmica. Foi uma busca pessoal e um desafio profissional. Uma extensa referência bibliográfica já fundamenta o que tantos outros já viveram e sentiram. De Pollock a Miró, Picasso e Kandinsky, Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Portinari e outros tantos.

Todos, artistas a frente de seu tempo, conectados a seu próprio tempo.

Deste extenso trabalho, estudo e reflexão, uma nova construção profissional ganha forma. Um reinventar-se acontece. E tudo, absolutamente tudo, decorrente da escuta atenta do que a intuição e o inconsciente pessoal tem a dizer. A mim, a você, a qualquer um que esteja aberto a mergulhar nas profundezas do próprio mundo interno.

“ A pintura permite que o “invisível se torne visível”. (Paul Klee)

 

Jornada Arteterapêutica – Para viver o tempo

Já visualizo textos encadernados, ciclo fechado, fins de semana livres e nada de correria de última hora em busca de materiais, sucatas e textos. Depois do Sound Book, da Síntese Arteterapêutica, enfim a Jornada em Arteterapia. Depois, e quase por último, o Artigo Científico, com data de entrega para abril de 2017. Meu tema? A Arteterapia como terapia, escrita em 1a pessoa: o relato do que foi meu curso, as vivências, insights e aprendizados pessoais. Se eu quiser colocar a mão em mais um certificado, a de Arteterapeuta reconhecida e cadastrada pela Associação dos Arteterapeutas, um cem número de horas de estágio e supervisão me aguardam. Durante o ano que passou, quando algumas colegas iniciaram seus estágios, optei por esperar para quando estivesse atendendo em consultório.

A ideia original ao escolher e fazer o curso de Arteterapia era me reaproximar e retornar à Psicologia (depois de tempo demais longe do consultório), sem muita cobrança e exigências, mas, sempre com muito prazer. Terminar o curso – pelo menos a parte teórica – era o tamanho ideal. Assim, o título de Arteterapeuta, em nenhum momento, pesou para a evolução e finalização do curso. Sabia que participaria dos 3 anos de formação. Como psicóloga, vejo a Arteterapia como um acréscimo bárbaro no atendimento clínico. E pra quem pensa que Arteterapia é tipo uma Terapia Ocupacional, está muito enganado. Eu mesma me surpreendi com o efeito de muitas técnicas e entendimentos psicodinâmicos. São ferramentas e técnicas de trabalho que ampliam e diversificam ainda mais o meu fazer terapêutico, assim como o Coaching Pessoal e tantas outras formações realizadas ao longo do caminho. Sem contar, no passeio que fiz pela teoria analítica de Jung (e que pretendo transformar numa grande expedição), outro referencial teórico que certamente fará alguma diferença.

Enfim… o tema e a própria jornada.

material publicitário usado para divulgação da jornada.
material publicitário usado para divulgação da jornada.

“Jornada Arteterapêutica de finalização do curso de formação de terapêutas em Arteterapia pelo instituto Incorporar-te:Espaço Terapêutico Corpo Artes, no qual foi vivenciado o tempo com mais prazer e consciência. Essa vivência aconteceu no dia 03/12, em Florianópolis. As terapeutas em formação : Andréa Mosqueta, Carol Schesari, Giovanna de Medeiros Cargrin, Helen Cristina Ferreira, Margareth Amud, Marina Luz Rotava Paim, Nanci Hass da Cruz e Suzete Herrmann, conduziram essa vivência.”

momento de falar de expectativas
momento de falar de expectativas
Trabalho em argila.
Trabalho em argila.
O olho de Deus.
O olho de Deus.
Musicoterapia, dança, exercícios respiratórios, meditação.
Musicoterapia, dança, exercícios respiratórios, meditação.

Uma das ferramentas usadas na Arteterapia é a contação de histórias. O conto escolhido foi o fio mágico.

Um pouco de teoria: Aión, Cronos, Kairós e Anenké. Os deuses do tempo.
Um pouco de teoria: Aión, Cronos, Kairós e Anenké. Os deuses do tempo.
O tempo segundo grandes pensadores da história da Humanidade.
O Tempo, segundo grandes pensadores da história da Humanidade.

 

Os deuses do tempo

Como muito bem disse Rubem Alves: “O tempo pode ser medido com as batidas de um relógio ou pode ser medido com as batidas do coração”.

Na mitologia grega se encontravam vários titãs descendentes de Gaia. O caçula era Cronos, a personificação do tempo. Também existia Aión (ou Eón, para os romanos), o tempo eterno, em contraste a Cronos, como o tempo empírico dividido em passado, presente e futuro. Entre essas deidades temporais também tinha Kairós. Kairós é um conceito da filosofia grega que representa um lapso indeterminado em que algo importante acontece.

Aión era o deus das eras, das décadas e dos milênios. Representa o eterno ciclo do tempo e a evolução da humanidade. É a própria eternidade. Por ser o criador do tempo, e de tudo o que existe no universo, os gregos consideravam que a humanidade era filha de Aión, portanto, uma vez que é impossível fugir ao tempo, todos seriam mais cedo ou mais tarde, vencidos por ele.

Os gregos antigos tinham ainda duas outras palavras para o tempo: Cronos e Kairós. Enquanto Cronos faz referência ao tempo cronológico, sequencial, o tempo que se mede; Kairós é o momento indeterminado no tempo, em que algo especial acontece, a experiência do momento oportuno.

Kairós, o deus da oportunidade, era filho de Zeus – o deus dos deuses e de Tykhé, a divindade da fortuna e prosperidade. Descrito como um belo jovem calvo com um cacho de cabelos na testa, ele era um atleta e tinha uma agilidade incomparável. Resplandecente e com a flor da juventude, Kairós tinha duas asas nos ombros e nos joelhos. Sempre sem roupas, ele corria rapidamente e só era possível alcançá-lo agarrando-o pelo topete, ou seja, encarando-o de frente. Depois que ele passava, era impossível perseguí-lo, pegá-lo ou trazê-lo de volta. Entre os romanos era chamado de Tempus, o breve momento em que as coisas são possíveis. Kairós tinha o poder do movimento rápido que podia passar despercebido aos olhos desatentos, tornando impossível recuperar a visão de sua passagem. Dada à sua natureza difícil, raramente proporcionava uma segunda chance. Na filosofia grega e romana é a experiência do momento certo e oportuno. Kairós era descrito como um jovem que não se importava com o relógio, o calendário e o tempo cronológico. Ele era o tempo que não podia ser cronometrado, o tempo que não pertencia a Cronos porque não previsível, apenas acontecia, por isso era chamado de momento ou oportunidade. Kairós é o tempo divino que o vento traz, a vida conspira, decide acontecer sem tempo, sem hora marcada, se manifesta instante a instante e permanece eterno. Kairós marca os momentos que se tornam eternos, ainda que tenham sido breves. Os gregos acreditavam que com Kairós poderiam enfrentar o cruel tirano Kronos.

Cronos era um titã que se tornou senhor do céu após destronar seu pai (Urano), e a partir desse acontecimento os titãs passaram a governar o mundo. 
O mito do Cronos ilustra temas como envelhecimento, mudança entre outros elementos relacionados ao tempo. “Chronos devora ao mesmo tempo que gera”. Essa é uma alusão ao mito que ele devorava todos os filhos assim que deixavam o ventre sagrado da mãe. De acordo com a mitologia ele temia uma profecia segundo a qual seria tirado do poder por um de seus filhos pois não queria que ninguém lhe sucedesse, além dos próprios filhos devorava os seres e o destino.

Cronos era descrito como o velho, o Senhor do tempo, das estações, da pressão das horas ordenadas pelo relógio e pelos dias, meses e anos determinados pelo calendário. Cruel e tirano, Cronos controlava o tempo desde o nascimento até a morte, aquele tempo comum, real, visível e rotineiro. O Tempo Cronos era o ditador da quantidade de coisas realizadas durante o dia, o tempo burocrático, o tempo humano, o tempo que nunca é suficiente, o tempo que escraviza, preocupa e estressa. Cronos deu origem ao cronômetro e aos medidores do tempo, o tempo dos homens. Vivemos no contexto de Cronos, do tempo linear, o tempo que corre sempre para frente. Observamos a nossa idade avançar, o desenrolar de acontecimentos, mudanças, declínios e ascensões. Estamos tão condicionados à necessidade de cumprir as expectativas do tempo imposto pelo relógio, que não nos permitimos ser naturais: tornamo-nos mecanizados pela força do tempo que exige de nós cada vez mais tempo. Cronos nos torna menos humanos e nos torna mais máquinas, porque está sempre ao nosso encalço exigindo pontualidade, estabelecendo ritmos e metas. Pagamos um alto preço para cumprir as normas do tempo.

Em nossa vida estamos sempre lutando contra o tempo tentando distribui-lo entre as nossas diversas atividades diárias. A sensação de estar perdendo tempo com alguma coisa, seja o trabalho, a faculdade, um relacionamento, um livro ou filme ruins ou pouco prazerosos, mostra a nossa preocupação com o tempo que escorre e nos deixa insatisfeitos. Porque para sermos felizes, é preciso mais do que usar o tempo com eficiência.

Kairós está relacionado à qualidade do tempo vivido, um tempo divino, presente nos momentos especiais e inesquecíveis, que não se perdem no tempo do calendário. Ele flui, vai e retorna, marcando os momentos emocionantes. Refere-se a um instante, ocasião ou momento, que deixa uma impressão forte e única por toda a vida. Por isso, Kairós refere-se a uma experiência atemporal na qual percebemos o momento oportuno em relação à determinada ação.

Quantos momentos Kairós deixamos de viver, por estarmos preocupados com o tempo Cronos: o primeiro sorriso de um filho, uma mão estendida no momento oportuno, o abraço confortante no momento de tristeza, um carinho que arranca a tristeza do coração em um momento de infelicidade. São muitos momentos Kairós, que apesar de breves, fazem a diferença. Quantos momentos Kairós são lembrados depois que alguém se foi e, independente do tempo Cronos que tenhamos vivido com essa pessoa, são os momentos Kairós que deixam as lembranças inesquecíveis. São as recordações dos momentos Kairós que nos fazem sentir saudade. Quando estamos vivendo os momentos Kairós queremos que Cronos permaneça imóvel, porque queremos que o tempo pare para eternizar o momento.

O momento passado é único, mas pode ser revivido quando se fecha os olhos para senti-lo novamente. E por permitir sentir novamente, ele também se relaciona ao ressentimento, que é a face negativa de Kairós.

Trazendo o mito de Kairós para o nosso passado, certamente iremos constatar que muitas vezes o tempo das oportunidades se fez presente e o deixamos escapar. Bons negócios, possibilidades de estudos e relacionamentos, chances de perdão e reconciliação, são algumas das aberturas que ocorreram, que poderiam ter atenuado a implacabilidade de Cronos.

Quando vivemos no tempo Kairós aumentam as oportunidades em nossa vida. Basta repensar como surgiram nossas melhores oportunidades: de certa forma, estávamos desprogramados das exigências do tempo cronológico. Para os gregos Cronos representava o tempo que faltava para a morte, um tempo que se consome a si mesmo. Por isso, seu oposto é Kairós: momentos afortunados que transcendem as limitações impostas pelo medo da morte. Sempre que agimos sob o tempo kairós, as coisas costumam dar certo porque sabemos a hora certa de estar no lugar certo. Por exemplo, quando estamos quase desistindo de algo e resolvemos dar um tempo para a pressão, do nada surgem as pessoas certas que nos ajudam com soluções reais e práticas.

Kairos é o tempo oportuno, livre do peso de cargas passadas e sem ansiedade de anteceder o futuro. Ele se manifesta no presente, instante após instante. Esse tempo mágico ou oportuno é um convite para nos despojarmos da razão exagerada, cronológica e voltarmos a brincar com o tempo e vivê-lo com leveza e intensidade.

Agir no tempo regido por Kairós é similar a um ato mágico.

 relogio-afundando

 

 

 

 

O fio Mágico

Era uma vez uma viúva que tinha um filho chamado Pedro. O menino era forte e saudável, mas não gostava de ir à escola e passava todo o tempo a sonhar acordado.

— Pedro, com o que estás sonhar a uma hora destas? — perguntava-lhe a professora.— Estava a pensar no que serei quando crescer — respondia ele.

— Sê paciente. Tens muito tempo para pensar nisso. Depois de crescido, nem tudo é divertimento, sabes? — dizia ela.

Mas Pedro tinha dificuldade em apreciar alguma coisa que estivesse a fazer no momento e ansiava sempre pelo que vinha a seguir. No Inverno, ansiava pelo retorno do Verão; no Verão, sonhava com passeios de esqui e trenó. Na escola, ansiava pelo fim das aulas, para poder voltar para casa; e, nas noites de domingo, suspirava dizendo: “Ah, se as férias chegassem depressa!” O que mais o entretinha era brincar com a amiga Lise. Era uma companheira tão boa como qualquer rapaz e a ansiedade de Pedro não a afectava nem ofendia. “Quando crescer, vou casar-me com ela”, dizia Pedro consigo mesmo.

Costumava perder-se em caminhadas pela floresta, sonhando com o futuro. Às vezes, deitava-se ao sol sobre o chão macio, com as mãos postas sob a cabeça, e ficava a olhar o céu através das copas altas das árvores. Uma tarde quente, quando estava quase a adormecer, ouviu alguém a chamar por ele. Abriu os olhos e sentou-se. Viu uma mulher idosa, de pé, à sua frente. Ela trazia na mão uma bola prateada, da qual pendia um fio de seda dourado.

— Olha o que tenho aqui, Pedro — disse ela, oferecendo-lhe o objecto.

— O que é isso? — perguntou, curioso, tocando o fino fio dourado.

— É o fio da tua vida — retrucou a mulher. — Não toques nele e o tempo passará normalmente. Mas, se desejares que o tempo ande mais depressa, basta dares um leve puxão ao fio e uma hora passará como se fosse um segundo. Mas devo avisar-te: uma vez que o fio tenha sido puxado, não poderá ser colocado de volta dentro da bola. Ele desaparecerá como uma nuvem de fumo. A bola é tua. Mas se aceitares o meu presente, não contes a ninguém; caso contrário, morrerás no mesmo dia. Agora diz-me, queres ficar com ela?

Pedro tomou-lhe das mãos o presente, satisfeito. Era exactamente o que queria. Examinou-a. Era leve e sólida, feita de uma única peça. Havia apenas um furo de onde saía o fio brilhante. O menino colocou-a no bolso e foi a correr para casa. Quando chegou, depois de se certificar da ausência da mãe, examinou-a outra vez. O fio parecia sair lentamente de dentro da bola, tão devagar que era difícil perceber o movimento a olho nu. Sentiu vontade de lhe dar um rápido puxão, mas não teve coragem. Ainda não.

No dia seguinte, na escola, Pedro imaginava o que fazer com o seu fio mágico. A professora repreendeu-o por não se concentrar nos deveres. “Se ao menos”, pensou ele, “já fossem horas de ir para casa!” Tacteou a bola prateada que se encontrava dentro do bolso. Se desse apenas um pequeno puxão, logo o dia chegaria ao fim. Cuidadosamente, pegou no fio e puxou. De repente, a professora mandou que todos arrumassem as suas coisas e fossem embora, organizadamente. Pedro ficou maravilhado. Correu sem parar até chegar a casa. Como a vida seria fácil agora! Todos os seus problemas haviam terminado. Dali em diante, passou a puxar o fio, só um pouco, todos os dias.

Entretanto, logo se apercebeu que era tolice puxar o fio apenas um pouco todos os dias. Se desse um puxão mais forte, o período escolar estaria concluído de uma vez. Poderia aprender uma profissão e casar-se com Lise. Naquela noite deu, então, um forte puxão ao fio e acordou na manhã seguinte como aprendiz de um carpinteiro da cidade. Pedro adorou a sua nova vida, subindo aos telhados e andaimes, erguendo e colocando, à força de marteladas, enormes vigas que ainda exalavam o perfume da floresta. Mas, às vezes, quando o dia do pagamento demorava a chegar, dava um pequeno puxão ao fio e logo a semana terminava, já era a noite de sexta-feira e ele tinha dinheiro no bolso.

Lise também se mudara para a cidade e morava com a tia, que lhe ensinava os afazeres do lar. Pedro começou a ficar impaciente a respeito do dia em que se casariam. Era difícil viver, ao mesmo tempo, tão perto e tão longe dela. Perguntou-lhe, então, quando se poderiam casar.

— No próximo ano — disse ela. — Eu já terei aprendido a ser uma boa esposa.

Pedro tocou com os dedos a bola prateada dentro do bolso.

— Ora, o tempo vai passar bem depressa — disse, com muita certeza.

Naquela noite, não conseguiu dormir. Passou o tempo todo agitado, virando-se de um lado para o outro na cama. Tirou a bola mágica que estava debaixo do travesseiro. Hesitou um instante, mas logo a impaciência o dominou, e ele puxou o fio dourado. Pela manhã, descobriu que aquele ano já havia passado e que Lise concordara afinal com o casamento. Pedro sentiu-se realmente feliz.

Mas, antes de que o casamento pudesse realizar-se, recebeu uma carta com aspecto de documento oficial. Abriu-a, trémulo, e leu a notícia de que deveria apresentar-se no quartel do exército na semana seguinte, para servir por dois anos. Mostrou-a, desesperado, a Lise.

— Ora — disse ela — não há nenhum problema, basta-nos esperar. Mas o tempo passará depressa, vais ver. Há tanto que preparar para nossa vida a dois!

Pedro sorriu com galhardia, mas sabia que dois anos durariam uma eternidade a passar.

Quando já se acostumara à vida no quartel, entretanto, começou a achar que não era tão má assim. Gostava de estar com os outros rapazes e as tarefas não eram tão árduas como a princípio. Lembrou-se da mulher que o aconselhara a usar o fio mágico com sabedoria e evitou usá-lo por algum tempo. Mas depressa voltou a sentir-se inquieto. A vida no exército entediava-o, com as suas tarefas de rotina e a sua rígida disciplina. Começou a puxar o fio para acelerar o decurso da semana, a fim de que chegasse logo o domingo ou o dia da sua folga. E assim se passaram os dois anos, como se fosse um sonho.

Terminado o serviço militar, Pedro decidiu não mais puxar o fio, excepto por uma necessidade absoluta. Afinal, era a melhor época da sua vida, conforme todos lhe diziam. Não queria que acabasse assim tão depressa. Mas deu um ou dois pequenos puxões ao fio, só para antecipar um pouco o dia do casamento. Tinha muita vontade de contar a Lise o seu segredo; mas sabia que, se contasse, morreria.

No dia do casamento, todos estavam felizes, inclusive Pedro. Mal podia esperar para lhe mostrar a casa que construíra para ela. Durante a festa, lançou um rápido olhar na direcção da mãe. Percebeu, pela primeira vez, que o cabelo dela estava a ficar grisalho. Envelhecera rapidamente. Pedro sentiu uma ponta de culpa por ter puxado o fio com tanta frequência. Dali em diante, seria muito mais parcimonioso no seu uso, e só o puxaria se fosse estritamente necessário.

Alguns meses mais tarde, Lise anunciou que estava à espera de um filho. Pedro ficou entusiasmadíssimo, e mal podia esperar. Quando o bebé nasceu, ele achou que não iria querer mais nada na vida. Mas, sempre que o bebé adoecia ou passava uma noite em claro a chorar, ele puxava um pouco do fio para que o bebé tornasse a ficar saudável e alegre.

Os tempos andavam difíceis. Os negócios iam mal e chegara ao poder um governo que mantinha o povo sob forte opressão e pesados impostos, e não tolerava oposição. Quem quer que fosse tido como agitador era preso sem julgamento, e um simples boato bastava para se condenar um homem. Pedro sempre fora conhecido por dizer o que pensava, e logo foi preso e lançado na cadeia. Por sorte, trazia a bola mágica consigo e deu um forte puxão ao fio. As paredes da prisão dissolveram-se diante dos seus olhos e os inimigos foram arremessados à distância, numa enorme explosão. Era a guerra que se insinuava, mas que logo acabou, como uma tempestade de Verão, deixando o rasto de uma paz exaurida. Pedro viu-se de volta ao lar com a família. Mas era agora um homem de meia-idade.

Durante algum tempo, a vida correu sem percalços, e Pedro sentia-se relativamente satisfeito. Um dia, olhou para a bola mágica e surpreendeu-se ao ver que o fio passara da cor dourada para a prateada. Foi olhar-se ao espelho. O cabelo começava a ficar-lhe grisalho e o seu rosto apresentava rugas onde nem se podia imaginá-las. Sentiu um medo súbito e decidiu usar o fio com mais cuidado ainda do que antes. Lise dera-lhe outros filhos e ele parecia feliz como chefe da família que crescia. O seu modo imponente de ser fazia as pessoas pensarem que ele tinha perfil de chefe. Possuía uma certa de autoridade, como se tivesse nas mãos o destino de todos. Mantinha a bola mágica bem escondida, resguardada dos olhos curiosos dos filhos, sabendo que, se alguém a descobrisse, seria fatal.

Cada vez tinha mais filhos, de modo que a casa foi ficando cheia de gente. Precisava de a ampliar, mas não dispunha do dinheiro necessário para a obra. Tinha também preocupações. A mãe estava a ficar idosa e, com a passagem dos dias, ia parecendo mais cansada. Não adiantava puxar o fio da bola mágica, pois isto só lhe aceleraria a chegada da morte. De repente, ela faleceu, e Pedro, parado diante do túmulo, pensou no modo como a vida passara tão rapidamente, mesmo sem fazer uso do fio mágico.

Uma noite, deitado na cama, sem conseguir dormir, pensando nas suas preocupações, achou que a vida seria bem melhor se todos os filhos já estivessem crescidos e com carreiras encaminhadas. Deu um fortíssimo puxão ao fio, e acordou no dia seguinte vendo que os filhos já não estavam em casa, pois tinham arranjado empregos em diferentes pontos do país, e que ele e a mulher estavam sós. O cabelo estava quase todo branco e doíam-lhe as costas e as pernas quando subia uma escada, ou os braços quando levantava uma viga mais pesada. Lise também envelhecera, e estava quase sempre doente. Ele não aguentava vê-la sofrer, de tal forma que lançava mão do fio mágico cada vez mais frequentemente. Mas, sempre que um problema não se resolvia, já outro surgia em seu lugar. Pensou que talvez a vida corresse melhor se ele se aposentasse. Assim, não teria de continuar a subir aos edifícios em obras, sujeito a lufadas de vento, e poderia cuidar de Lise sempre que ela adoecesse. O problema era a falta de dinheiro suficiente para sobreviver. Pegou na bola mágica, então, e ficou a olhar. Para seu espanto, viu que o fio já não era prateado, mas cinza, e perdera o brilho. Decidiu ir para a floresta dar um passeio e pensar melhor no significado de tudo aquilo.

Já fazia muito tempo que não ia àquela parte da floresta. Os pequenos arbustos haviam crescido, transformando-se em árvores frondosas, e foi difícil encontrar o caminho que costumava percorrer. Acabou por chegar a um banco no meio de uma clareira. Sentou-se para descansar e caiu num sono leve. Foi despertado por uma voz que o chamava pelo nome: — Pedro! Pedro!

Abriu os olhos e viu a mulher que encontrara havia tantos anos e lhe dera a bola prateada com o fio dourado mágico. Aparentava a mesma idade que tinha no dia em questão, exactamente igual. Ela sorriu-lhe.

— E então, Pedro, a tua vida foi boa? — perguntou.

— Não tenho a certeza — disse ele. — A sua bola mágica é maravilhosa. Nunca na minha vida tive de suportar qualquer sofrimento ou esperar por qualquer coisa. Mas tudo foi tão rápido! Sinto como se não tivesse tido tempo de apreender tudo o que se passou comigo; nem as coisas boas, nem as más. E agora falta tão pouco tempo! Já não ouso puxar o fio, pois isso só anteciparia a minha morte. Acho que o seu presente não me trouxe sorte.

— Mas que falta de gratidão! — disse a mulher — Gostarias que as coisas fossem diferentes?

— Talvez se me tivesse dado uma outra bola, em que eu pudesse puxar o fio para fora e para dentro também. Talvez, então, eu pudesse reviver as coisas más.

A mulher riu-se.

— Estás a pedir muito! Achas que Deus nos permite viver as nossas vidas mais de uma vez? Mas posso conceder-te um último desejo, meu tonto exigente.

— Qual? — perguntou ele.

— Escolhe — disse ela.

Pedro pensou bastante.

Ao fim de bastante tempo, disse:

— Gostaria de voltar a viver a minha vida, como se fosse a primeira vez, mas sem a sua bola mágica. Assim, poderei experimentar as coisas más da mesma forma que as boas, sem encurtar a sua duração. Pelo menos, a minha vida não passará tão rapidamente e não se parecerá com um devaneio.

— Seja — disse a mulher. — Devolve-me a bola.

Ela esticou a mão e Pedro entregou-lhe a bola prateada. Em seguida, ele recostou-se e fechou os olhos, exausto.

Quando acordou, estava na sua cama. A sua jovem mãe debruçava-se sobre ele, tentando acordá-lo carinhosamente.

— Acorda, Pedro, não vás chegar atrasado à escola. Estavas a dormir como uma pedra!

Ele olhou para ela, surpreendido e aliviado.

— Tive um sonho horrível, mãe. Sonhei que estava velho e doente e que minha vida passara como num piscar de olhos sem que eu sequer tivesse ficado com algo para contar. Nem ao menos algumas lembranças.

A mãe riu-se e fez que não com a cabeça.

— Isso nunca vai acontecer — disse ela. — As lembranças são algo que todos temos, mesmo quando somos velhos. Agora, anda, vai-te vestir. A Lise está a tua espera, não deixes que ela se atrase por tua causa.

A caminho da escola, em companhia da amiga, observou que estavam em pleno Verão e que fazia uma linda manhã, uma daquelas em que era óptimo estar-se vivo. Em poucos minutos, estariam a encontrar os amigos e colegas, e mesmo a perspectiva de enfrentar algumas aulas não parecia tão desagradável assim. Na verdade, ele não cabia em si de contente.

William J. Bennett
O Livro das Virtudes
Editora Nova Fronteira, 1995 (adaptação)

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