Elis

Quem visse a rapariga magra, alta, de longas pernas e fios louros e lisos se espraiando pelos seios pequenos e bem delineados não imaginaria quão pesado era o fardo para manter o relacionamento com André, a sensação masculina da temporada na praia e nas academias. Bonito, rico, bem sucedido, e, ninfomaníaco. Ou melhor, viciado em testosterona injetável e num menu variável de mulheres. Elis, a rapariga, até se esforçava. No início, até ajudava a prospectar candidatas para uma noitada a três, quatro … e uma cama. 

Mas, o que era para ser exceção, virou regra. A fantasia colapsou e virou O Pesadelo. O relacionamento a dois tornou-se um relacionamento de  possibilidades, caras, bocas, peitos e bundas. Nada de “falos” a mais. Era André o aficionado por ménage trois e a ideia de que quanto mais mulheres juntas na cama, melhor. 

Pra quem não sabe, uma ménage trois não se limita apenas a dividir o parceiro de lençóis com mais pessoas. A transa não é exatamente um negócio ou um relacionamento. O troço se inicia muito antes do ato em si e se sustenta com infindáveis mensagens e fotos. É a preliminar do ménage. Fotos, papos, condições e indicações pipocam em todas as direções. E todos, absolutamente todos, precisam entrar em acordo para que o ménage aconteça. Questões sexuais, sensuais, logísticas e financeiras precisam fechar e caber na transação. Depois, espera-se, há de se gostar das escolhidas, de preferência com um tiquinho ou ticão de química. 

Para Elis, eram mulheres demais pra acomodar no relacionamento sexual de um relacionamento afetivo com pinta de futuro matrimônio. Eram diálogos soltos em bate-papos de whatsapp, nudes e sorrisos assombrando as noites solitárias após as noitadas apoteóticas regadas a sexo, álcool e drogas. Cenas e posições, visões e gemidos, sussurros e sorrisos num vai e vem frenético e descompensado. Nada disso fazia parte dos planos de Elis. E os sonhos dela transformaram-se num tormento só. 

Ela só queria experimentar uma vez e nunca mais. 

Queria apimentar a relação e mostrar o quanto era avançada e moderninha. Mas André, não só aprovou como provou da ideia e tornou-se um expert no assunto. Um viciado em ménage trois.

Elis passou da medida e a pimenta estragou a relação. 

Jardinando 1

A fase é de desbravamento. Ou, de reconhecimento.

Jardinagem, ou paisagismo, como preferir, é assunto antigo entre os temas de interesse. Lembro do meu gorjeio de menina moça, junto ao meu primeiro namorado (e ainda marido, 42 anos depois) do quanto gostava de plantas e jardins. Gostava sim. Não era mentira pra encantar nem fisgar alguém. Os anos passaram e com eles vieram outras  fases e interesses: os filhos pequenos, a faculdade, a carreira de psicóloga, o casamento, as viagens, a arte, o artesanato, a literatura, as crises, os conflitos, o dia a dia cheio de mistérios, metas, sonhos e realizações.

As constantes mudanças/transferências profissionais e a vida em apartamentos ou casas alugadas não me envolveram com a questão da porta para fora de onde eu e minha família vivíamos. Mantinha o que me era ofertado/alugado. Até nos mudarmos para nossa casa no interior do RS.

Nossa primeira casa, nosso primeiro jardim.

Quem inicialmente se envolveu com o jardim foi meu marido, para quem, jardinagem era sinônimo de força. Força para carregar pedras e terra e plantar o gramado e todo tipo de plantas. Deste primeiro jardim, lembro-me dos crisântemos roxos, do Buganvile cor de rosa, das Unhas de Gato, das árvores frutíferas (bergamoteira, jabuticabeira e bananeiras) e da cerca viva de cipreste. Felizmente a carreira de engenheiro e de jardinista/jardineiro/paisagista não se conciliaram. Fui autorizada a assumir o jardim. Tão logo foi possível, contratei uma renomada paisagista (mas nem tanto, já que esqueci o nome da dita cuja). Com ela veio a equipe de jardineiros, dois caminhões de plantas, terra, pedras e seixos rolados e cinco dias de muito esforço. Para eles. Coube a mim a agradável tarefa de acompanhar o andamento dos trabalhos. Desta época sobraram as pedras, as Dracenas, o Croton vermelho e as Strelitzas. Os Bambus Mossôs, as Moreias, os Rabos de Gato e as Bromélias Imperiais sucumbiram ao clima, à cachorra Aisha e ao passar do tempo.  Com a reforma dos pisos e a troca da pedra São Tomé, na beira da piscina, veio a terceira versão paisagística, sob a tutela da amiga Marlise, proprietária de um dos maiores e mais belos viveiros de plantas do RS: a Floricultura Toque Especial.  Foi ela quem trouxe as Fênix e as Cicas. Os Aspargos, as Dracenas Verdes e as Gramas Pretas. Mais pedras e o remanejamento das Dracenas Rosas. E os maravilhosos Kaizucas. Surgia então a ideia de um jardim perene, de pouca manutenção e alta resistência. Com o passar do tempo veio a última versão do jardim, com o acréscimo dos Cactos, das Orquídeas em alguns recantos e as Algarves na sacada dos fundos de casa. E este jardim tem se mantido bem nos últimos 12 anos, que, além das podas frequentes e do corte da grama Esmeralda, requer agora uma pequena repaginação. Com a adubação anual (realizada entre maio e junho) as plantas agigantaram, os cactos tomaram conta dos seus  e de outros espaços e as orquídeas tombaram junto com os xaxins que as acomodavam.

Pensei em adequar o jardim. O primeiro passo seria contratar um jardineiro 4 horas por semana para dar novos contornos aos quatro cantos do jardim. Ele veio apenas uma vez. Choveu, choveu, surgiram outros compromissos, desisti. Do pouco que fizemos foram retirados os excessos de cactos e a arrumação do antigo canil/hospital das plantas. A poda e adubação da bergamoteira e da jabuticabeira. E a redução substancial do bananal. Foi o que deu para fazer neste momento.

Hoje preparo um outro jardim, num outro lugar, para outra vida.

Porque assim é a vida. Um eterno e constante vir a ser.

Escrita e meditação

São dez horas da manhã. As cortinas do atelier estão abertas. Me acomodo no sofá de almofadas soltas e tento relaxar. O sol de outono belisca meus pés. Vou testar um novo método de meditação, com tempos definidos para meditar e escrever: sete, catorze, vinte e um e vinte e oito minutos.

Primeiro tempo: de zero a 7 minutos. Tempo de escrever e me perder na escrita: acabei de chegar de viagem; a empregada surtou; a geladeira pifou; Iara desmarcou a sessão; minha mãe ligou. Escrevo compulsivamente. Coisas demais para registrar. Sete minutos em um. Me perdi no tempo e na palavra “mais” da frase inacabada.

Segundo tempo: dos sete aos catorze minutos. Tempo de meditar. Fecho os olhos e foco na respiração. Relaxo por um segundo. Lá fora o jardineiro passa o soprador na grama esparramada pela calçada. Arthur está indo ao consultório com o carro da Sandra, vejo com o rabo do olho. A rua está deserta. A obra inacabada continua abandonada. Os pingentes da cortina batem com o vento. Conchas, cristais, miçangas e pérolas, sinos do vento, apanhador de sonhos, a corrente verde-vermelha de Natal. Tudo balança no ritmo da brisa que vem do mar e da minha distração. Preciso de foco. Preciso fechar os olhos. Mas a persiana insiste em bater no batente da janela. Me irrito. Abro os olhos e foco na respiração: inspirar, expirar. Inspirar, expirar. A costura da cortina está torta. Vou ter de refazer. Confiro o tempo: mais três minutos. Meus dedos começam a tamborilar na almofada do sofá. Fixo o olhar na cerâmica de Edmundo Campos, em forma de sol, que dança no vão da janela aberta – ou seria da ceramista Vania Bueno? – Lembro do veredicto de uma antiga terapeuta: medo de perder o controle. Olho para o sol que rodopia seus raios cor de laranja e vermelho. Mexo os dedos dos pés e tenho de reconhecer que fechar os olhos e perdê-los de suas referências sempre me deixaram tonta. Por isso desisti de fazer yoga e abandonei a terapia. Não vou teimar nem fincar o pé, taurina que sou. Toco no botão do timer. Mais 54 segundos. Respiro fundo e finco os olhos no sol de Edmundo.

Terceiro tempo: dos catorze aos vinte e um minutos. O que me atrapalhou no segundo tempo? Medo, controle, impaciência, ruídos. O sol. Vania Bueno ou Edmundo Campos? Escrevo por mais sete minutos. Uma verdadeira verborreia literária e finalizo com “Faz parte”.

Quarto tempo: dos vinte e um aos vinte e oito minutos. Sublinho no texto algumas passagens. A alma da crônica é grifada com caneta marca texto amarela. “Difícil ficar de olhos fechados e pensar no nada.” “Não consigo ficar sem pensar ou sem fazer alguma coisa.” “Por onde anda meu silêncio? Talvez não fazer nada me mostre o que tenho de fazer.”

Meditação concluída. É hora de escrever.

O contato com o pensamento, sensações e afetos ganha pé. Ganha fundamento. Através das palavras desvenda-se o que os olhos fechados e a agitação tentam esconder. Parece existir um mundo descomunal por trás desta escuridão! Um mundo temido que envolve, abraça, amassa. Onde é melhor ocupar o corpo e a mente para não enfrentar monstros conhecidos de uma vida inteira. Onde o silêncio se perde no vácuo, e ao mesmo tempo, é engolido por todos os ruídos da existência. Onde lembranças e cobranças assombram. Neste mundo acelerado de olhos fechados, tudo se amplifica.

Mas, ao abri-los, o conhecido se apresenta do jeito que sempre foi. Com carimbo de controle, familiaridade e segurança. Ao refletir e escrever sobre a experiência meditativa, a constatação de que novos sentimentos e ponderações podem vir à tona. E por mais monstruoso que possa parecer, fechar os olhos e mergulhar no silêncio, inspirar e expirar, inspirar e expirar, focar na respiração e escrever, pode ser uma experiência meditativa e literária bem interessante. Alguns monstros ganham nomes, outros transformam-se em querelas insignificantes e outros, simplesmente desaparecem, assim, num estalar de dedos e piscar de olhos.

No controle

Assisto as orientações do exercício treze, da Oficina de Escrita Criativa, três vezes. Programo o timer do celular: sete, catorze, vinte e um e vinte e oito minutos. Olho a hora. São dez horas da manhã. As cortinas do atelier estão abertas. Me acomodo no sofá de almofadas soltas e tento relaxar. O sol de outono belisca meus pés. Toco no botão do timer. Hora de me perder na escrita: Acabei de chegar de viagem. A empregada surtou. A geladeira pifou. Iara desmarcou a sessão. Minha mãe ligou. A piscina transbordou. Escrevo compulsivamente. Coisas demais pra registrar. Sete minutos em um. Me perdi no tempo e na palavra “mais” da frase inacabada.

Segunda programação do timer. O que era mesmo pra fazer? Se não fizer certo Perdeu. Tem de recomeçar do zero, foi o que entendi. Tento me acalmar. Fecho os olhos e foco na respiração. É isso. Relaxo por um segundo. Lá fora o jardineiro passa o soprador na grama esparramada na calçada. Arthur está indo para o consultório com o carro da Sandra, vejo com o rabo do olho. A rua está deserta. A obra inacabada está abandonada. Os pingentes da cortina batem com o vento. Conchas, cristais, miçangas e pérolas, sinos do vento, apanhador de sonhos, a corrente verde-vermelha de Natal. Tudo balança no ritmo da brisa que vem do mar e da minha distração. Preciso de foco. Preciso fechar os olhos.

Mas, a persiana insiste em bater no batente da janela. Me irrito. Abro os olhos e foco na respiração: inspirar e expirar. Inspirar e expirar. A costura da cortina está torta. Vou ter de refazer. Confiro o tempo do timer: faltam 3 minutos. Meus dedos começam a tamborilar na almofada do sofá. Fixo o olhar na cerâmica de Edmundo Campos, em forma de sol, que dança no vão da janela aberta – ou seria da ceramista Vania Bueno? Lembro do veredicto de uma antiga terapeuta: medo de perder o controle. Olho para o sol que rodopia seus raios cor de laranja e vermelho. Mexo os dedos dos pés e tenho de reconhecer que fechar os olhos e perdê-los de suas referências sempre me deixaram tonta. Por isso desisti de fazer yoga e abandonei a terapia. Mesmo concordando com a terapeuta. Não vou teimar nem fincar o pé, taurina que sou. Toco pela terceira vez no botão do timer. Mais 54 segundos. Respiro fundo e finco os olhos no sol. Já já o timmer vai tocar e vou ter de pensar no que me atrapalhou no exercício: medo, controle, impaciência, ruídos. O sol. Vania Bueno ou Edmundo Campos? O próprio exercício. Os sete minutos mais longos do dia. O timer toca.

Escrevo pelos últimos minutos do exercício e finalizo com “Faz parte”. Sublinho no texto algumas passagens. “Difícil ficar de olhos fechados e pensar no nada.” Clichê demais pra desenvolver. Talvez num outro momento. “Não consigo ficar sem pensar ou sem fazer alguma coisa.” Óbvio demais. “Por onde anda meu silêncio? Talvez não fazer nada me mostre o que tenho de fazer.” Uma eterna fuga esta obsessão por controle e metas. Era apenas uma tarefa. Um simples exercício. Crônica ou conto?

Seria esta a crônica do Tempo Perdido?

Ou o conto do Tempo Vivido?

O pior de mim

Conheci Josélia há exatos 5 anos. Na época, eu era uma recém-formada cheia de sonhos e planos. Minha primeira meta era a especialização em Integração Sensorial para melhor atender as crianças autistas, minha clientela na APAE de Blumenau. Às vezes, na vida, coisas boas vem junto com coisas ruins. Josélia apareceu na mesma época em que perdi meu pai, assassinado com catorze facadas, numa madrugada fria, no ferro velho em que morava sozinho, na periferia de Curitiba. Meu pai é uma assombração eterna. Desde sempre, a simples menção a seu nome, Josué, causa calafrios em tudo e todos. Que o diga a família da minha mãe, que desde o primeiro momento, foi categoricamente contra o relacionamento dos dois. Mas, minha mãe estava apaixonada. De quatro por ele. Engravidou. Casou. Ele ficou desempregado e montou uma Oficina Mecânica. Vendeu automóveis roubados e muito mais, é o que deduzo, pela pena de 35 anos em regime fechado, e agora, este violento e sangrento assassinato. Não gosto de lembrar do que vivi por causa deste amor maldito. É coisa do passado, da qual sou mera consequência.

Aprendi a lutar por tudo que quero e preciso, por necessidade. Não queria a vida que minha mãe, por culpa ou vergonha, atraiu para si. Seu olhar é uma súplica, e ao mesmo tempo, um engodo. No fundo, o que a manteve viva foi a piedade alheia. E foi esta piedade, o prêmio de suas escolhas. Um amor bandido. Um negro como marido, um tapa na cara de sua família italiana apostólica romana. Conheço a dor de minha avó Antonella. Se ela se envergonha das escolhas da filha? Não. Não mais. As netas foram o bônus maior de tudo que aconteceu. E ter a vida da filha no cabresto e rédea curta, tem dado a ela a sensação de importância e razão. Mesquinho da parte dela, mas, absolutamente verdadeiro. E é justamente por causa da minha avó que me tornei quem sou.

Por isso, quando Josélia comentou da atrocidade do pai, ao internar sua avó, mãe de sua mãe, num asilo de quinta categoria em Curitiba, não aguentei. Assim como minha mãe, também a mãe dela desceu ao inferno por causa de um amor maldito. Mas diferente da minha mãe, a mãe dela morreu. Morreu por confiar naquele homem asqueroso, que de tanto traí-la, a contaminou com AIDS.

Visito Josélia e a vó de vez em quando. São um quarto barato em Curitiba.

Diferente de mim, Josélia é um doce de pessoa. Talvez a exposição dela ao amor de um homem e uma mulher não tenha tido consequências tão abomináveis quanto eu tive.

Já tentei amar. Não consigo. O fogo que me fez nascer me queimou. Esturricou qualquer forma de relação com os homens. Já tentei o amor homo e bissexual. Nenhum me satisfaz. O que me satisfaz é pendurar as crianças de ponta cabeça no meu consultório, ver o pavor naqueles olhos idiotas, ver suas mães desesperadas pela cria que trouxeram ao mundo, os pais embasbacados com a confusão generalizada em suas casas e seus casamentos. Meu prazer maior.

Sou filha do amor bandido da minha mãe e dos crimes do meu pai, criada entre segredos e sussurros. Sobrevivi a todos me tornando quem sou.

Posso parecer neurótica. Psicótica talvez. Sei que não faço mal a ninguém. Jamais machucaria alguém. Aquelas crianças dependuradas estão mais seguras comigo do que em seus apartamentos sem telas de proteção. Meu prazer é silencioso e cuidadoso. Basta olhar os absurdos que a raça humana faz com suas vidas, em nome do amor. Homens e mulheres tornam-se imbecis em suas Ferraris e minissaias. Loucos e pervertidos. Vão continuar gerando autistas. Porque somos todos autistas, egoístas de olho no próprio umbigo, no próprio prazer. Eu não. Como fruto da idiotice, nasci imunizada ao amor. Graças a meus pais.

Obrigada vovó. Sobrevivi aos desatinos de todos. Aos seus, inclusive.

O melhor de cada um

Conheço Janaína há alguns anos. Da época em que íamos juntas, uma vez por mês, de ônibus, de Blumenau a Curitiba. Enquanto ela ia para a residência no Hospital Universitário da UFP, eu ia visitar minha avó, internada num asilo para pessoas idosas.

Desde a primeira vez que sentamos juntas, a história de Janaína, mexeu muito comigo. Uma mulata 6:30h, com cabelo afro, desabou a meu lado, na minha primeira ida à Curitiba. Estava indo ver minha avó, escorraçada de casa por meu pai, sem que eu conseguisse fazer nada pra evitar esta desgraça familiar. Ai de mim se me opusesse à decisão dele com relação à mãe de minha falecida mãe. Com muito custo, economizei o dinheiro da passagem + a noite num hostel, para dar apoio à minha avó, inconformada com a morte da filha, a ingratidão do genro e a fragilidade da neta. Fazia então, o que achava ser o meu melhor.

Mal Janaína sentou a meu lado, começou a falar sobre sua formação em terapia ocupacional, a especialização para atender crianças autistas e o quanto amava o que fazia.

  • E você, faz o que?
  • Sou professora. Dou aula pra primeira série numa escola municipal de Blumenau.
  • Você gosta do que faz?
  • Gosto.

Janaína me metralhou com tantos o que, quando, porque, onde, quantos, que fiquei zonza em menos de 15 minutos.

  • Tô te cansando né?
  • Mais ou menos. Me fala um pouco de você.

Reparei uma dor avassaladora dominando seu semblante. As mãos retorcendo. O corpo contraindo.

       –     Você está bem?

  • Estou triste.
  • Posso ajudar?
  • Meu pai faleceu no fim de semana passado.
  • O que aconteceu?

E Janaína falou. Falou sobre o pai que morava num ferro velho, na periferia de Curitiba. Um presidiário em liberdade condicional, condenado a trinta e cinco anos de cadeia. Não, ela não sabia porque o pai estava preso. O assunto era um tabu. Ninguém falava nada sobre o assunto. Nem a avó de Janaína, nem a mãe. Nem mesmo o pai. Com sua morte, ou melhor, com as quatorze facadas que lhe tiraram a vida, este segredo teria de ser revelado. Afinal, os parentes de Josué, seu pai, poderiam estar correndo risco de vida, visto a violência com que ele foi assassinado, dizimado, eliminado. Sua mãe, Ivone, estava em choque. Não acreditava no destino cruel do grande amor de sua vida. Apesar de separados, Janaína tinha certeza do amor shakesperiano dos pais.

  • Minha mãe é branca. Meu pai era negro. Imagina o que foi o amor dos dois!
  • Um Romeu e Julieta inter-racial. Eles estavam separados desde quando?
  • Eu tinha sete anos quando meu pai foi preso. Era muito menina ainda.
  • Sua mãe casou de novo?
  • Não. Minha mãe juntou eu e minha irmã e se mudou pra casa de minha avó. Foi ela e meu tio que nos ajudaram durante todos estes anos.
  • Sua avó ainda vive?
  • Vive sim. Minha mãe ainda mora com ela e minha irmã.
  • E você saiu de casa?
  • Saí. Eu não queria repetir a história de pobreza e discriminação da minha família. Sei o que é depender do dinheiro e da boa vontade dos outros. Em Blumenau, uma afrodescendente como eu, precisa mostrar o quanto é boa pra ser aceita.
  • Sua mãe deve ter orgulho de você.
  • Acho que sim. Ela sabe o quanto me esforço, trabalho e economizo. Depois da especialização que estou fazendo na UFP, vou comprar um apartamento. Depois, uma sala. É. Tenho muito trabalho pela frente.

Fiquei impressionada com a história da Janaína. Mais impressionada ainda, fiquei com a determinação e os sonhos de sucesso da crioula do cabelo crespo. Ela foi uma inspiração para mim. Ao longo destes últimos anos, também eu me meti a trabalhar mais e estudar mais. Saí da casa do meu pai. Aluguei um apartamento em Curitiba onde vivo com minha avó. Ela ajuda a pagar as contas, como a avó da Janaína ajuda. Hoje sei que faço o melhor que posso.

E Janaína é sempre muito bem vinda em nossa casa.

Medo da morte

Duas vezes por semana, Francisco e Eugênio encontram-se na Praça XV de Novembro, mais conhecida como Praça da Figueira, no centro, quase em frente à Catedral Metropolitana de Florianópolis, na altura do número 55 da Rua Padre Miguelinho, quase na esquina da Rua Procurador Abelardo Gomes. É lá, que há mais de vinte anos, os dois aposentados se encontram para jogar dominó nas mesinhas de concreto cimentadas, com tabuleiro pintado, disputadas aos berros pela turma dos cabelos brancos do centro da capital açoriana.

  • Toda vez é a mesma coisa. Dá vontade de garrar estes novatos que não conhecem as regras da mesa.
  • Eugênio, se amaina. Vamos começar logo este jogo, que o tempo xispa rápido demais.
  • A gente tá ficando velho e
  • Velho não. Usado e sabido.
  • Olha estes istepori ao nosso redor. Tudo jogado nos bancos, de olho nos tanso pra roubar celular ou bolsa.
  • Deixa eles se entenderem. Vamo jogar.
  • Você não fica renoso?
  • Com o que?
  • Com tudo que tá acontecendo.
  • A gente ajuda não atrapalhando.
  • Tais um velho. Não entende de nadica de nada.
  • Tu também.
  • Não gosto destas peças
  • Cê sempre encontra uma desculpa.
  • Cê tá me intisicando. Não tá abarrotado de abacaxis como eu.
  • Tais muito imunado. Encasqueta com tudo, isso sim.
  • Ando meio desinfeliz Desde que a Lurdinha partiu, não vejo mais graça em nada. Quer saber? Vamo parar com este jogo. Vou carcár pelo centro. Tchau.
  • Tais tolo? Fica atochando a gente.
  • Vou caminhar por aí.
  • Vá-se então.

E lá se vai Eugenio caminhar pelo centro de Florianópolis. Desde que sua Lurdinha morreu, Eugenio não é mais o mesmo. Anda tristonho e acabrunhado. Andar pelas ruas estreitas de paralelepípedo em meio ao casario, lojas e feirinhas, no centro de Florianópolis, tem sido a melhor alternativa para passar as tardes cinzentas e invernosas. As partidas de dominó entre velhos amigos aposentados passaram a irritá-lo. O status de viúvo também. Foi quando o centro começou a revelar sorrisos e sotaques para os quais Eugênio nunca teve olhos nem ouvidos. Flertar com as vendedoras e turistas argentinas, bater papo nas cafeterias e grasnar com os vendedores ambulantes, tem sido um santo remédio para a doença crônica que se abateu sobre Eugênio: o medo da morte. E o fim dos tempos, como gosta de falar Eugênio, funcionário público aposentado que passou a vida carimbando datas, distribuindo senhas, mostrando entradas e saídas nas mais diferentes repartições públicas em que trabalhou. De repente, a companhia dos velhos amigos era a única ligação com tudo que envelheceu e morreu: o trabalho e o casamento. Bastava a Eugênio, quem sabe uma nova companheira, quem sabe novos amigos.

Só não sabia como dizer isso aos velhos amigos.

E isso o irritava demais.

Oliveta

Recebi uma carta da Oliveta me convidando pra assistir o eclipse do alto da montanha onde ela vive. Quem ainda, em pleno século vinte e um, manda cartas? Só ela mesmo. Deve estar sozinha e sem internet. Vou telefonar e avisar que passarei alguns dias com ela. Assim dá tempo dela organizar o sofá ou a cama.

Ao ler a carta bateu saudades da minha amiga bicho grilo, que escolheu viver nas montanhas, entre as bananeiras e a Lagoa de Itapeva. Escolhas que a gente faz quando se é jovem, inexperiente e sonhador. De qualquer forma, Oliveta parece ser feliz assim. Pra quem não conhece minha amiga, ela é a cara da Abigail, a atriz que interpreta a personagem no seriado da Netflix, Maria Magdalena. Tenho preferido assistir filmes e seriados inspirados em passagens da bíblia nestas noites de frio, chuva e neblina. Nada de romances xexelentos, nem filmes de ação ou super heróis.

Ando precisando relaxar. Botar o pé no chão. Colher flores e frutos do próprio pé. Oliveta deve ter mantido o canteiro de copos de leite e o abacateiro. O melhor abacate é aquele colhido do pé, amadurecido embrulhado em jornal. Fica docinho e cremoso, comido da própria casca, a polpa esmagada com garfo, uma colherada de açúcar e uma pitada generosa de canela.

Não posso esquecer de levar os chinelos de pelo e o cobertor. Os textos pra ler e papeis pra escrever. Oliveta é espartana demais em questões de conforto e papelaria. Me admira que ela ainda compre livros de papel. Virou uma defensora ferrenha das árvores. Será que ela já cortou aquele pinheiro torto, acho que é um kaizuca velho e podre, perigosamente inclinado sobre a casa dela? Vai saber. Espero ao menos, que ela tenha mantido a trilha ao redor do lago para correr, caminhar e tirar fotos. A vista que se tem das montanhas, daquele ângulo, quando o sol se põe é digno de um Sony World Photography Awards. Também não posso esquecer de colocar na mala a máquina fotográfica e o tripé. E um tapete. Não sei como Oliveta consegue viver sem um tapete do lado da cama. E uma luminária se quiser ler à noite. É desumano a forma como minha amiga vive naquele fim de mundo. Pelo menos tem asfalto até quase chegar lá. Precisa sair na última saída antes de entrar na Free Way. Senão, tem de seguir até Santo Antônio da Patrulha e retornar.

Onde anotei o telefone da Oliveta? Deve estar na agenda. Nada. Numa agenda antiga? Nada. Será que Oliveta não tem telefone em casa? Parece impossível, sabendo que até os massais, no interior do interior da África tem, mas com Oliveta, tudo é possível. O jeito é ir sem avisar. Sem remetente. Aparecer do nada, afinal fui convidada. Espero ao menos que quando chegar naquele estrupício de lugar, tenha fogo na lareira, estoque de nó de pinho e muito vinho. Porque ver o eclipse daquele lugar, só com muita reza. Será que Oliveta tem Netflix? Óbvio que não. Um televisor? Energia elétrica?

Vinte e quatro horas de safari

Era o vigésimo dia de viagem.

Uma segunda feira fria e chuvosa em Lake Maniara, na Tanzânia. Da pousada até Ngorongoro, trinta quilômetros e a mais densa neblina. Depois de pagar o impublicável, rodamos na borda da cratera do vulcão extinto à procura da descida. Cruzamos com grupos de búfalos e massais, meros vultos esfumaçados naquela manhã nebulosa até encontrarmos a simplória entrada e a confirmação do ranger de que o tempo estaria aberto no interior da cratera. À medida que descíamos, a cratera se revelou por completo. Cinquenta quilômetros quadrados de manadas de gnus, zebras, elefantes e búfalos, hienas, girafas, javalis, rinocerontes, gazelas e leões, flamingos e hipopótamos e toda sorte da fauna africana desfilando por savanas, campos, florestas e lagos. Enquanto eu dirigia o 4X4, com direção à direita, meu marido tirava fotos. Era um pára, volta um pouco, mais pra frente, troca de lente. Fileiras de 4X4 com turistas do mundo todo e suas poderosas objetivas apontando em todas as direções, um vai e vem constante, todos determinados a encontrar os big five. Até as treze horas, era o horário estipulado para sairmos da cratera, rodar outros 50 quilômetros em estrada de terra e chegar ao Serengeti National Park, onde dormiríamos naquela noite.

Ao entrar no parque mais famoso da África, e possivelmente do mundo, avistamos uma alcatéia de leões – machos, fêmeas, filhotes, adolescentes e adultos, num total de 10/12 leões – posicionados estrategicamente sobre uma rocha de dez metros de altura, entre a estrada e uma gigantesca manada de gnus e zebras. Nos distraímos.

Perdemos a hora e o sinal de internet. Começou a chover. E nenhuma placa sinalizando o Ole Serai Luxury Camps, nosso hotel.

Estávamos perdidos. E eu, levemente – e assustadoramente – preocupada.

Andando a esmo, nos deparamos com uma hipopótamo fêmea recém saída do rio, com cara de quem foi pega pelada. Freei secamente e a hipopótama saiu em disparada. Comecei a rir de nervoso. Aquilo não podia ter acontecido. O combinado era que depois das três da tarde deveríamos ir direto para o hotel. Já eram cinco horas e não tínhamos ideia da direção a seguir.

Acabamos por conseguir sinal de internet na minúscula cidade de Seronera. Apenas um pin marcando o hotel e uma bolinha que mal se movia. A bolinha éramos nós. À frente, noventa minutos em estrada de carroça, buracos, chuva e poças d’água. Um cavalo de pau inesperado e um buzinaço no meio de uma manada de elefantes irritados e parados no meio estrada, atrapalharam tanto quanto a noite e a chuva. Mal víamos as indicações dos hotéis. O que víamos era a bolinha chegar cada vez mais perto do pin. Enfim, a primeira placa do Ole.

Em trinta minutos éramos recepcionados por dois masais saltitantes e um esfuziante káribu (bem vindos no dialeto suaíli), enormes guarda chuvas, toalhinhas aquecidas e perfumadas, braceletes de boas vindas e muitas mãos para carregar nossas malas. O Ole Serai Luxury Camps é um resort esparramado entre a savana e a mata. Ao todo são vinte e seis tendas decoradas com requinte e conforto. Ao pisar no tapete persa e sentir o frescor e a maciez do lençol branco acetinado da cama king size percebi que estava, enfim, segura.

Depois do jantar e do vinho sul-africano, desmaiamos no aconchego do lugar. Durante a noite, a cantiga de ninar foram os rugidos dos leões, que demarcavam o território, nas imediações do Ole. A sensação foi de plenitude e encantamento.

Eu faxineira

Estava eu às voltas com a construção da nossa casa de praia. Fora de temporada, éramos apenas eu e as gaivotas mais os lagartos e um ou outro passante. Nem sinal da faxineira. Empregada nem pensar. Como eu não podia deixar o caos tomar conta do meu paraíso na terra, arregacei as mangas e fiz o que qualquer faxineira ou empregada faria: coloquei lenço na cabeça, avental na barriga e a roupa mais detonada encontrada entre as caixas de mudança e os móveis inacabados ou desmontados. Os pedreiros e marceneiros, eletricistas e jardineiros, por algum motivo, não apareceram. Fiquei feliz com o sossego e a solidão inesperada.

O dia transcorria numa tranquilidade incrível quando meu celular tocou. Era o motorista da transportadora contratada que estava trazendo a escada helicoidal que ligaria meu atelier ao mezanino. Ele estava perdido por entre as ruas desertas do balneário. Orientei o dito cujo com todas as referências possíveis. A chance dele não encontrar a casa era inimaginável. Seguir sempre pela Avenida Búzios, a principal e mundialmente famosa avenida de Jurerê, até chegar na parada de ônibus número 6, dobrar à direita e de novo à direita. E lá estávamos nós: eu e minha casa. Depois de uns 15 minutos, fui do jeito que estava esperar pelo caminhão. O vi passando, e olhando na direção contrária a que eu estava. Fiz sinal, abanei as mãos e gritei mas ele não viu. Ou não reparou. O telefone tocou dentro de casa e fui atender. O caminhão passou de novo. Não cheguei à tempo e ele simplesmente sumiu por detrás das dunas. Esperei mais quinze minutos e nada. Me sentei na escada e esperei. Mais quinze minutos. O telefone tocou de novo e deixei tocar. Vai que o caminhão voltasse e eu o perderia mais uma vez por causa de uma ligação idiota de uma concessionária de telefonia. A esta altura, o tempo e o telefone insistente mais o sumiço do caminhão me deixaram intrigada. Decidi atender o telefone. Um inconveniente a menos. E bingo: era o motorista do caminhão. Mais perdido que cego em tiroteio ou cachorro em dia de mudança. Como ele foi parar na aldeia dos pescadores na Praia do Forte é algo absolutamente inexplicável. Fazer o que. Voltei pra frente de casa e orientei o motorista com todas as esquerdas e direitas que ele deveria seguir até chegar na esquina e me ver. E lá veio o caminhão de novo. O motorista parou na esquina, olhou pra mim e virou no outro sentido. Como se eu não existisse. Saí correndo, feito uma histérica. Por algum milagre, o motorista me viu pelo espelho retrovisor e brecou.

  • Puxa moço, o senhor não me viu na esquina fazendo sinal?
  • Estou procurando a casa da Dona Suzete.
  • Eu sou a Dona Suzete.

O motorista abriu a porta do caminhão, desceu e me olhou de cima a baixo.

  • Tem certeza?
  • Absoluta.

Arranquei o lenço da cabeça e o avental da barriga. Dei uma balançada nos cabelos. Abri dois botões da camisa e amarrei na cintura. Me abaixei e dei três voltas na barra da calça jeans. Enfim, deixei de ser a faxineira Suzete para ser a Dona Suzete.

Gatinhos no porão

A casa dos meus avós era gigantesca. Um verdadeiro castelo quadrado, com pé direito alto, cheio de portas e janelas. Lá dentro funcionava uma venda que vendia desde tecidos (chitas, cambraias, tergal e anarrugas) até bonecas, chupetas, bibelôs, feijão, balas. Céus, o que era o baleiro daquela venda? Três andares com cinco/seis gomos cada, cheinhos de caramelos e pirulitos. O telefone antigo – que acabei de restaurar – era ligado por fios a uma Central. Eu conhecia todas as centristas, que por acaso, eram mães das minhas amigas. Eram elas que completavam as ligações telefônicas e foram – sem querer ou querendo, vai saber? – cúmplices de muitas fofocas e namoros escondidos. Eu que o diga. De um lado da venda funcionavam os secos e molhados e a bodega: banha de porco vendida em latão, cebolas e batatas e o “schluc” do “happy hour” de cachaça de alambique. Do outro lado, paredes cheias de cortes e tecidos, gavetas abarrotadas de rendas, calcinhas e calçolas, linhas, gravatas e camisolas, botões e caminhões de madeira; prateleiras de louças, potes plásticos, brinquedos e tudo que se pode imaginar que exista numa venda nos arrabaldes do interior do interior do Rio Grande do Sul. Aquela venda era o paraíso para uma menina de mãos leves e mente curiosa. Nos fundos da casa, separada por um imenso balcão, funcionava a casa propriamente dita. Com direito a avós, bisavô, tia-avó, os pais e um irmão metido a caçador de tico-ticos. Eu e mais 25 gatos. Os móveis eram antigos e gastos. A decoração, deprimente. Os lustres eram singelos topes – ou laços, como preferem alguns – de papel crepom enroscado no benjamim da lâmpada. Sem contar a banheira de louça encardida e pés de leão. Um luxo. Pelo que lembro, além do fogão à gás Venax, o mais moderno que existia naquela casa eram os móveis em fórmica – um balcão, mesa e seis cadeiras – e o sofá de courino vermelho. Depois chegaram a TV Telefunken, a Monark da Caloi …

Saindo pela porta dos fundos o que eu via eram os Jardins de Versailles. Um labirinto de cercas vivas, jardins de dálias e rosas, cravos e crisântemos, um gramado infestado de rosetas e tiriricas, dois balanços, uma gangorra e uma cama elástica feita com tiras de câmaras de pneu de caminhão, que meu pai, orgulhosamente fez. Árvores de todos os tamanhos circundavam as laterais da casa, a estrebaria, o galinheiro e os chiqueiros. A horta. O pomar. A plantação de milho. O matinho. O Rio Taquari.

Este era o meu reino, com direito a brincar de casinha, venda, elástico, sapata, bola, carrinho de lomba, Cinderela, Jane e Tarzan, roubar amendoins torrados e testar todas as chupetas da venda, sem contar a apropriação de um dos porões daquele casarão com ares de Versailles.

Infelizmente, meu reino infantil encolheu depois que saí de casa. Virou miniatura depois que conheci o legítimo Palácio de Versailles. E hoje, cabe inteirinho dentro das minhas lembranças.

E é dentro destas lembranças que tento resgatar aqueles porões.

Eram dois. Dois enormes porões escuros e úmidos divididos por uma cisterna. De um lado, o porão de móveis e roupas em desuso. Um baú preto imenso, com roupas do período imperial corvense. Cristaleiras com fundos espelhados, copos de licor cor de rosa, xícaras de porcelana quebradas, pratos e travessas da bisavó Elisa. Penteadeiras com gavetas recheadas de dentaduras e armações de óculos quebrados de todos os moradores. Os vivos e os mortos. Prateleiras com ânforas, pratos, pinicos, dosadores e pesos. Tapetes puídos, camas de ferro com lastro de molas e tantas outras geringonças impossíveis de lembrar.

Do outro lado, na fachada dos fundos, o porão dos entulhos. Minha apropriação.

Visto de frente, o casarão parecia ter um único andar, mas visto dos fundos, o casarão exibia um imenso vão e paredes marrons intercaladas por pequenas janelas basculantes de vidros canelados e sujos. No vão maior, funcionava a lavanderia da casa, ostentando uma tábua desequilibrada e um martelo de madeira para bater roupa, sabão caseiro feito de sebo de boi, um tanque de cimento, baldes de lata e bacias de alumínio, além de uma bomba de água que passou a vida gorgolejando. Nem a Consul, nem a Brastemp e muito menos o sabão em pó OMO e a Sanremo andaram por lá naqueles idos tempos. Esta esdrúxula lavanderia era a antessala de um enorme porão – o meu porão – que se espraiava por metade do subsolo da casa, onde eram guardados restos de tudo: de lenha e madeira para queimar no fogão à lenha, vassouras de piaçava desgastadas, cadeiras e balanços quebrados, guarda-chuvas estragados, vasos de barro abandonados; tijolos, telhas, sacos de batata e farinha empilhados, engradados de madeira, garrafas e garrafões de vinho vazios, carrinhos de mão, enxadas e pás. Bem ao fundo, uma nesga multicolorida refletia as paredes úmidas da cisterna sinalizando a água que escorria pelo chão batido e desembocava no rebaixo de pedras de areia, onde descansavam sapos grandes de dorso pitipoá. Meus indesejáveis e eternos hóspedes.

O silêncio úmido só era quebrado, de tempos em tempos, pelo miado fraco das diversas ninhadas de gato que nasciam sem cerimônia e atenção. Naquela época não haviam programas de castração. Veterinário era médico de boi e vaca e de porco pra castrar. Aos gatos, os ratos. E as ninhadas. De alguma maneira, sempre soube que a tarefa de manter a população de gatos sob controle era do meu avô Eugênio. Era dele também a tarefa de lavar chiqueiros e estrebarias vazias e montar minhas casinhas de boneca arejadas no verão e preparar a parte ao lado da lavanderia do porão dos gatos, para a casinha de inverno.

Assim, tanto meu avô quanto eu, ouvíamos os primeiros miados dos recém-nascidos, encalacrados no mais fundo breu daquele porão. Meu avô se fazia de surdo. Eu também. Ele ia tratar as galinhas, capinar a horta e tirar leite das vacas, enquanto eu colocava as bonecas pra dormir, lavava as panelinhas cheias de lama, folhas e sementes de árvores e arbustos e varria o chão batido da casinha caprichada com teias de aranha, tijolos aparentes e a trilha sonora mais fofa que se poderia querer. Quando meu avô sumia de vista, eu escalava os entulhos do porão em busca da gata e sua ninhada e os colocava mais fundo, mais longe e mais seguros do alcance das mãos do meu avô. Sempre com os olhos e o pavor atentos aos sapos pretos de bolinhas brancas que rondavam a área e à chegada inesperada de Eugênio. Sabia que era ele quem acabava com os gatinhos. Só não sabia como. Ouvia cochichos pela casa e olhares dissimulados sobre dar um fim nos gatos, que chegaram a vinte e cinco numa época em que fui muito eficiente. Vinte e cinco gatos criados soltos, xucros e selvagens. Meus amiguinhos. Também eles faziam parte das minhas brincadeiras. Vivia aranhada e feliz feito Dian Fossey, a zoóloga americana que morreu defendendo os gorilas em Ruanda, na África. Diferentemente dela, sobrevivi. De todos os jeitos.

Um dia vi como meu avô dava sumiço nas ninhadas. Fiquei horrorizada. O saco de linhagem estava cheio de filhotes com poucas horas de vida, rosados, sem pelo e de olhos fechados. Eram pequeníssimos fetos felinos. Quando o vi sacar filhote por filhote e atirá-los sem dó nem piedade com força nas pedras de areia nos fundos do casarão, próximo à estrebaria, gritei e corri desesperada e quase derrubei meu avô na tentativa de poupar alguns filhotes.

Ele me afastou com rispidez, tirou o cinto, me ameaçou e gritou. Que eu me afastasse, ou então, ele teria de fazer algo muito pior que matar gatinhos. Apavorada, corri e chorei no colo da minha avó. Ela explicou que não havia comida nem ratos suficientes para todos aqueles gatos que eu insistia em salvar. E sobre o pior que meu avô poderia fazer comigo era dar-me uma bela surra. Coisa que ele jamais fez.

Meu avô e eu continuamos nos fazendo de surdos e desentendidos.

O veterinário foi chamado mais vezes para castrar gatos e gatas – pelo menos aqueles que ele conseguia pegar, pois a maioria crescia xucra e selvagem – muitos gatos morreram envenenados, eu cresci, meu avô envelheceu, e ambos, deixamos a natureza seguir seu curso.

Minha paixão pelos gatos continua.

Meu asco pelos sapos também.

A saudade do meu avô é eterna.