Uma nova temporada com mamis

Amanheci com o rosto de um anjo dourado no forro do quarto onde durmo na casa de minha mãe.

Ele me lembra um cartão que um dia uma paciente me deu. Eu era o anjo da guarda dela.

O anjo dourado apenas me olhava, num forro todo craquelado de formas douradas.

Virei o rosto. Olhei de novo. E lá estava o anjo dourado sorrindo para mim.

Fechei os olhos e dormi.

Quando o dia amanheceu, o anjo havia sumido.

Será que foi um sonho? Uma premonição?

Foi bonito, e se eu pudesse, pediria que ele retornasse mais vezes e invadisse minhas noites insones.

Cheguei ontem de Florianópolis com uma missão.

Cuidar da minha mãe idosa.

Com quase 84 anos, chegou aquela hora de inverter os papeis.

Os olhos azuis caídos e sem brilho me alvejaram feito flecha:

Minha mãe precisa de mim.

O corpo emagrecido

As pernas bambas

A insegurança no andar e no falar,

o aquecedor ligado esquecido,

A repetição constante dos velhos e eternos assuntos,

Os esquecimentos, falhas e lapsos de memória

acionaram o alarme.

Hora de ser mãe de minha mãe.

Cheguei e encontrei-a sorridente na área em frente à casa:

“Vc veio com o Alfredinho?

O café está pronto, cozinhei milho verde e linguiça.”

“tudo que quero é comer bergamota do céu e te abraçar”

Saio do carro e vou ao encontro dela.

“Então eu também vou.”

Largo as sacolas no chão, 

coloco as poltronas no gramado

ao lado da bergamoteira no meio do pomar

entre o sombreado e os raios de sol das 14 horas, em plena quarta-feira.

Começo a colher minhas bergamotas preferidas. Do céu.

“Prefiro as pokan.” O pomar da casa de minha mãe é sortido e está farto. Encho uma cesta de bergamotas e conversas. A hora é do mais puro prazer.

“Estava contando as horas pra vc chegar.”

“Eu também”.

As três semanas passaram, muito foi feito. Outro tanto ainda por fazer. Como todo idoso, minha mãe desgosta de cuidadores, empregadas e faxineiras. “Só quando precisa”. Na casa da minha mãe precisaria de um exército ajudando. A casa e o jardim são enormes. Um cortador de grama e um jardineiro esporádico me ajudam a deixar o jardim mais ou menos em ordem. Como organismo vivo que é, o jardim está sempre fora das medidas e tem sempre planta renascendo e reivindicando espaço. 

Ao chegar, minha mãe, além de feliz estava nervosa:

Havia recebido duas intimações extra-judiciais (mas o judicial tirou-lhe o sono) para podar ou abater as plantas que colocam a rede elétrica de alta tensão em risco. 

E assim, seguiremos em frente: curtindo e resolvendo problemas.

O que seria da vida sem esta dupla?

Mudei. ??

Ao acordar, hoje pela manhã, como é de praxe nestes tempos esquisitos, peguei meu celular pra ver se tinha alguma mensagem importante. Nada. Tudo quieto. Então, presumo eu, está tudo certo com quem me cerca. Circulei rapidamente pelo Twitter, e também, tudo do jeito como está a um bom tempo: tudo certo. Fui pro Facebook e vi uma postagem que achei interessante. Neste momento, minha filha liga da Austrália e ficamos conversando durante uma hora. Tomei meu café e retornei ao Facebook: queria postar a mensagem, supostamente de Cora Coralina. E cadê? Sumiu. Procurei de cima abaixo, de baixo acima, fui no Google, e nada. 

Mas enfim, o post dizia mais ou menos o seguinte: mudei tanto que quase não me reconheço e quem me conhecia, vai me redescobrir outra. 

Uma verdade incômoda. 

Melhorei ou piorei? 

Passei o dia com este questionamento na cabeça. 

Mudei. E mudei muito.

Me adequei a um novo momento, um novo lugar, uma nova situação. Superei crises e decepções, abracei novos caminhos, perdoei, afastei muitos, assumi o que desabrochou de mim. 

Melhor ou pior?

Diferente. Novo. Inusitado. 

Me gosto assim.

Nada a ver com a pessoa que eu era há uma década.

Percebi que ao longo desses 61 anos, dei vários cavalos de pau na vida. Rodopiei muito. Me transmutei assustadoramente. E de novo: 

Pra pior ou pra melhor?

Apenas mudei. Me adaptei. Aprendi novas lições. Abandonei muitas futilidades. Simplifiquei minha vida. Priorizei novas necessidades. Abandonei o que não me pertencia mais. 

Me gosto assim.

E quem me conheceu em outros tempos deve ficar chocado/a com minha mudança. Tô aprendendo a lidar com isto também. Quando descobrem quem eu me tornei, imagino que o choque passa. E vem outro. Como e por que eu mudei tão drasticamente? 

Porque foi necessário. Porque eu queria. Porque eu podia. A vida tem sido generosa comigo, apesar dos solavancos. 

Cheguei à conclusão de que tudo é mais simples do que acreditamos ser. Descomplicar tem sido meu lema de vida. De dramas familiares à escolha de um chinelo Havaianas para ir à casa de uma amiga, das brigas com o marido ao corte de cabelo. 

Às vezes me olho no espelho e penso: preciso caprichar mais, estou muito relaxada e desligada. Saio do quarto e sigo em frente. 

Tô bem demais. 

Sou o que posso e quero ser. E isso me basta.

Mais que suficiente.

Um fim de semana como o diabo gosta

Estou na casa da minha mãe há duas semanas, mais ou menos. Acho. Ando perdida nos dias e semanas. Como trabalho online, pouco importa onde estou: desde que tenha internet. O alarme diário me avisa dos compromissos profissionais. 

Vim para me organizar com uma mãe idosa, adequar a casa dela a este novo ciclo, simplificar os ambientes, falar com o médico, contratar alguém para o pernoite, trocar o chuveiro, definir qual plano de telefone fixo/celular/internet contratar, providenciar a poda e abate de plantas notificadas pela companhia elétrica, preparar o jardim e a casa para o inverno, organizar os armários, as roupas, lavar os tapetes, descer os aquecedores, conversar, fazer companhia, UFA …. enfim, ando atribulada. 

Resolvi passar o fim de semana na nossa recém desalugada casa. No carro, o bagageiro foi cheio de lenha pra queimar na lareira. Livros e lãs. E água. A ideia é deixar minha mãe descansar da minha presença e eu da dela. Ambas precisamos de um descanso. 

Mas, principalmente me acalmar. A vida segue seu curso e não tem como frear nem puxar o freio de mão. 

A casa está absolutamente clean. 

Não tem nem fogão, nem geladeira, nem televisão, mas tem cama e cafeteira. 2 sofás. Mesa e cadeiras. Lustres e telas, móveis embutidos vazios, um piso de tacão de cumaru, um jardim que adoro. Tem o básico para passar alguns dias. Mas tem o essencial:  uma energia vital para me abastecer e me restabelecer + silêncio e solidão.

A casa desalugada e agora à venda, fica a uns 20 km da casa da minha mãe. Fui direto ao supermercado me abastecer para o fim de semana. Vinhos, frutas e todas as guloseimas que faz tempo não compro. Decidi que eu merecia e extrapolei.

Assim, sábado foi dia de comer “porcaria”, beber um vinho caro “porcaria”, ler livros leves e fazer crochê. Desisti de revisar textos e escrever. Desisti de livros densos e teóricos. Basicamente fiz tudo isso, entre um cochilo e outro. Só acordei de fato, quando já era hora de dormir de verdade.

Optei por 2 releituras: “Poder, estilo & ócio, de Joyce Pascowitch (futilidades e curiosidades) e “A mão esquerda de Vênus” de Fernanda Young (poesia). “As coisas que você só vê quando desacelera” de Haemin Sunim, foi a novidade deste fim de semana light. Auto-ajuda budista.

Me empanturrei de prazer. 

Descansei.

Dormi muito. 

Sosseguei.

Agora é seguir em frente. Tem muito ainda por fazer e acontecer. 

Certeza de que estas pausas são fundamentais. 

Não sei o que acontece comigo

De repente, todas as minhas vontades, desejos e projetos evaporaram, sumiram, escafederam-se.

A vontade é de dormir, ler, caminhar na beira da praia, coletar conchas, conversar, comer pouco, deitar, dormir, acordar, olhar o relógio, que horas são, o que vou fazer? Vontade nenhuma de nada.

Desisti de fazer o pijama do flombayant aqui de casa. Trabalhoso demais. Enrolado demais. Demais demais e tudo o que quero é de menos.

Comecei um crochezinho básico para fazer uma capa para uma antiga cadeira de jardim que encontrei na casa de Lajeado. Ela é confortável e o trabalho só vale por causa disso. Mal iniciei e já estou medindo os 5 centímetros trabalhados como se já estivesse nas carreiras finais.

Andava tão bem, tão animada, tão cheia de ideias … peguei uma dengue que me virou do avesso e descobri uma senhora preguiça incorporada em cada pedacinho do meu ser.

Abandonei, temporariamente, meu curso de cerâmica. O torno elétrico que fique onde está. Estou de má vontade com ele. Quando ficar de bem, remarco minhas aulas.

Talvez devesse sair mais de casa, conversar com pessoas diferentes, ver coisas diferentes, comprar novos livros, ir ao cinema, passar a tarde no shopping – sem vontade – tenho me contentado com as caminhadas a beira mar … pelo menos, descobri meia cartela de fluoxetina, ainda no prazo de validade, de uma fase baixo astral de um ano atrás. A sensação de rastejar me deprime. Devo melhorar. Ando lendo com certa regularidade. De tudo um pouco.

A dengue, caros senhores, é uma destruidora de projetos e sonhos. Tudo engavetado.

Escrevo pouco, quase nada. Nas minhas caminhadas surgem várias, muitas ideias. Elas fogem assim que entro em casa.Trocamos de empregada de novo. Ando cansada desse troca-troca e da casa enorme onde moro.

Saudades do jardim da casa da minha mãe. Saudades da minha mãe. De colo de mãe. Saudades do sul.

Exausta do barulho de obra que me ronda. Esgotada com martelos, serras, gente, agito, caminhões.

Acho que é a dengue. Vão fechar 3 semanas que o mosquitinho me picou daqui a 2 dias. Eita bixinho poderoso esse mosquito. Convivo com este eu desmotivado há quase um mês. Não me gosto assim. 

Tenho de expulsá-lo das minhas entranhas.

Doença me intimida e suga minhas energias. Até clinicar tem sido exaustivo.

Vou melhorar.

Vou.

Vou melhorar.

Retomando, revisando, reprogramando

Outro texto antigo de 14/11/2021 escrito e não publicado. textos do período em que o WordPress estava com problemas. Ou seria meu computador? ou seria eu? importante que está aqui, pra me fazer relembrar o que foi o ano de 2021.

A fase não é das melhores. O dia é de mau humor. É domingo. 14/11/2021. Ando dolorida: joelho direito entravado, nervo ciático inflamado e as emoções pululando. Acabei do voltar do RS (82 anos da mãe + tomografia do crâneo + exame cardíaco). Antes estive uma semana na Praia dos Carneiros (80 km do Recife) em Pernambuco, com amigos da Caminhada de Santiago de Compostela + Maurício e Hortência. “Cadê Susi” era o chamado diário de Lígia, nordestina da gema, que adora uma festa, muvuca, barulho, música. Enquanto isso, Susi estava refugiada onde o silêncio conseguia penetrar. Nesta reta final, a ideia é fechar ciclos, terminar trabalhos, consumir materiais. Certamente tenho me esforçado. Me esgarçado. Me sobrecarregado:

  1. O jardim da casa de minha mãe no RS está 80% pronto. O sol forte, a falta de chuvas e o verão que se inicia nos sugere uma parada. A retomada ficou para março de 2022. Retomada e revisão: alguns setores merecem novos olhares, um ajuste aqui, outro acolá. Está ficando prático, lindo, mas principalmente, convidativo.
  2. A casa de minha mãe vai precisar de uma nova investida e renovada. A recém contratada faxineira Ivete, tem sido uma benção (como diz minha mãe). Por enquanto ela mantém, avança alguns ambientes e evita que a casa volte ao que era antes de 2020. Para lá, poucas ideias. Por enquanto, lavar, limpar, organizar, sucatear materiais antigos e reaproveitar as sobras da casa de Lajeado e o apartamento de São Paulo (Felipe).
  3. A casa de Lajeado foi alugada pela segunda vez este ano. Espero que o segundo casal (um psiquiatra e uma dentista se adaptem e se apaixonem pela casa, jardim e bairro e comprem a casa após um ano de contrato, apesar de sentir  falta do meu eterno refúgio. Quando penso que deveria desopilar e dar um tempo na vida, me vejo naquela casa. Dias atrás passei pela lateral e vi que está tudo em ordem. Me surpreendi com o sistema de segurança colocado no local (cerca eletrificada e muitos cartazes de vigilância monitorada). O lugar onde me sinto amada, acolhida e protegida desperta medo e insegurança nos estranhos. Que assim seja.
  4. A casa de Floripa precisa de um gigantesco trabalho de pintura, faxina, limpeza, organização, sucateamento e reaproveitamento de materiais. Depois de 30 meses cercados/ abraçados por construções e reformas das casas dos vizinhos mais próximos, começo a vislumbrar dias sem barulho e poeira e o tempo necessário para transformar a casa tornando-a do jeito que sempre sonhei. Alguns móveis novos à vista.
  5. Neste meio tempo, estou liquidando todo material do ateliê. Dos 30kg de argila, devo ter algo em torno de 500gr para trabalhar. Como a argila é atóxica, estou finalizando algo em torno de 60 peças utilitárias que podem servir pratos, ir ao forno ou micro-ondas, ser presenteados e fazer parte da louçaria da casa. A argila ganhou forma. Algumas já foram queimadas, outras estão na esteira e as últimas estão sendo moldadas ou secando. Depois vem a esmaltação, e por fim, a última queima. Dezembro promete o encerramento deste ciclo. Depois, lavar e limpar os materiais e acomodar nas prateleiras e aguardar novo ciclo cerâmico.
  6. Esta semana devo finalizar a manta de crochê. Um trabalho entremeado com as séries da Netflix ou Prime Vídeo. A presenteada da colcha será ou a Vivi, ou a Simone. Daí me esbaldo na colcha dos círculos de crochê. Sem previsão de término. Junho de 2023, uma possibilidade.
  7. Também nesta semana, a ideia é preparar os pilotos de velas e velas redondas. Muita vela acabada precisando de reciclagem.
  8. Decoração de Natal e início dos preparativos para Natal.
  9. Felizmente, os aromatizadores de ambiente foram feitos e já perfumam a casa.
  10. O consultório vai bem. Ainda atendo muito mais via online do que presencial. Tenho escrito pouco. Estou lendo na média. Meu computador está em fase terminal. Idem para meu telefone.
  11. Minhas emoções? Em pandarecos. Mas hoje, é melhor deixar tudo como está. Amanhã será um novo dia.

Lágrimas de março

Fábio, meu cabeleireiro de 48 anos, morreu. A Covid19 o levou. Desabei. Ele era a felicidade em pessoa. Tínhamos altos papos, éramos da mesma região do RS – quase vizinhos – e falávamos de coisas que eram muito comuns aos dois. Quando soube de sua morte, foi um baque: inacreditável que o Fábio não estivesse mais entre nós. Em 2020, devo ter ido três vezes ao salão. Ele comentou que de cada 10 clientes, 7 haviam desaparecido, inclusive eu. O vi a última vez em novembro/2020. Ele vai fazer falta na minha vida. Ir ao salão e encontrá-lo era uma injeção de ânimo, uma massagem no ego de proporções consideráveis. 

Nesta mesma toada de perdas, estou acompanhando minha amiga Candinha, que sofreu um AVC isquêmico, fazem 3 semanas, e continua em coma. Já foi entubada e neste momento, o maior problema é a septicemia hospitalar. Ela não está nada bem. Todo dia pela manhã ao abrir o whatsapp fico apreensiva. Candinha e eu estreitamos nossa amizade, depois que nossos maridos se aposentaram. Temos muitas coisas em comum, além da paixão pela pintura e cerâmica. Em minhas preces, oro para que ela fique bem. O que necessariamente não quer dizer que fique viva cheia de sequelas neurológicas. Ela odiaria vegetar. Que ela fique bem.

Também morreu minha professora da pré-escola e primeiro ano primário. Edith tinha 89 anos e será sempre uma querida lembrança. Foi ela quem me apresentou os carimbos, as letras, a caligrafia, as palavras, frases, e por fim, o catecismo. Ela, assim como minha mãe, adorava as plantas e a música. Sempre que passo em frente à casa onde ela viveu e envelheceu, admiro o enorme gramado, os agapantos e as strelitzas. Entre tantos professores, Edith é sempre nome lembrado, alguém que fez diferença na minha vida.

Viviane – minha assistente doméstica – ainda não retornou ao trabalho. São 15 dias sem dar sinal de vida. Pelo menos, sei que sua filha se recuperou do trauma físico das mordidas do cachorro. Já os traumas emocionais ainda são uma incógnita. Nestes 15 dias tenho me superado nos afazeres de casa. Todo santo dia é insano.  Amanheço sem saber por onde começar. Onde quer que eu olhe tem algo a ser feito ou providenciado. Quando as pernas não aguentam meu fardo nem meu corpo, espicho o esqueleto e as levanto sobre uma pilha de almofadas. 

Aprendi a não desistir. 

O segredo é descansar e seguir em frente. 

Porque coisas boas e ruins acontecem a todos o tempo todo.

Texto de 28/03/21

A miudeza da rotina

Quase um mês e meio sem postar. Escrever até ando escrevendo. Na conta deste período, um curso relâmpago sobre Cartas/Bilhetes (Literatura Epistolar), Experimentação Poética, e agora, um Mergulho nas obras de Adélia Prado, Cora Coralina e Ana Martins Marques. Oficinas da Lume com a energia da professora Mellrenault. Uma temporada em SP, outra no RS. Muito barulho com duas obras grudadas à nossa casa. E, frio. Muito frio. A meta é a segunda dose da vacina, agora em 28 de agosto e aguardar a chegada da primavera. Nada de romance à vista, nem cerâmicas, nem pinturas, nem exposições. Tenho vivido os dias entre os livros, as raras caminhadas, o consultório, os cursos online. E à noite, as maratonas de Netflix. A miudeza da rotina em tempos de COVID19. Nada a reclamar. Tudo a agradecer. 

Sogras

A minha era venenosa. Literalmente e venturosamente.

Talvez a benção dos velhos seja falar o que tem vontade, não importando o lugar, a pessoa, a situação. À  medida que aprendi a conviver pacificamente com ela – e imagino que ela me adorava – soube como evitar e desviar dos seus botes. Porque ela não poupava ninguém. De todas as coisas que lembro é que a sopa dela, é até hoje, a melhor que já provei; a galinhada tinha seus dias divinos e o sagu era simplesmente de comer ajoelhada, retorcida e com colherão. O melhor sagu de vinho do mundo!!!! Sempre a admirei pela capacidade de receber qualquer um a qualquer hora, não importando o que estava planejado para o dia. Uma benção da idade, certamente. Ela recebia sem cerimônia nem exageros: um chimarrão e um prato com doces. Qualquer doce de pacote de padaria. Nada de luxos ou surpresas. 

Para ela isso bastava. E era o suficiente. 

Uma das suas frases marcantes era a de que Deus nos deu dois ouvidos: um para deixar entrar e outro pra deixar sair o que quer que fosse dito, falado, comentado, aventado, gritado, sugerido. Nada de engolir em seco, muito menos caraminholar ou surtar. Sei que ela usou este mantra durante toda sua vida. Ou me fez parecer que era assim que ela administrou sua vida afetiva, até se tornar venenosa. Ela soube se blindar e quando chegou na reta de chegada, seu aniversário de 90 anos, ela simplesmente entregou os pontos e jogou a toalha. Foi apagando feito luzinha de Natal até partir para o outro plano sem muito sofrimento, mas muito choro de familiares amigos, vizinhos e parentes. Entendi que todos a respeitavam e que ela faria falta.

Eu bem que tentei colocar em prática este mantra. Nunca me bastou. Talvez por ser de caraminholar tudo e todos e surtar de vez em quando. Não aceito nem permito que façam dos meus ouvidos uma privada. Enquanto psicóloga, sim. Enquanto ser humano, não.

Acredito que todos temos direito a opinar, aceitar e discordar. Ter ideias e sonhos próprios. Metas, ritmos e objetivos pessoais. Ser o que se é ou se quer ser.

Este tem sido meu mantra. Possivelmente não chegue aos 90 anos como minha sogra. Também não chegaria se fizesse como ela fez. 

Somos mulheres de outros tempos.

Percebo porém e aos poucos, que tornar-se sogra e por tabela, venenosa, é uma questão de tempo.  

Insights

Tudo que eu queria era sair de onde estava, entrar no carro, engatar a marcha, voar pra casa, arrancar a roupa, tomar um banho e me esconder debaixo das cobertas. A sensação de pânico, de estar errada dos pés à cabeça, sinalizou que não faço mais parte deste cenário. Mais uma vez me senti a estranha no ninho. É chegada a hora de partir. De ir embora. Do contrário, serei uma prisioneira no tempo.

Por aqui ficam os Diálogos do Inconsciente.

Enfim, a Páscoa

Ano após ano, percebo o quanto me é difícil preparar a casa para a Páscoa. Sei que muitos mal sabem que existe decoração de Páscoa. Existe. E é tudo muito fofo e bonito. São ovos e coelhos de todos os tipos e tamanhos, materiais e opções. Mas, sempre, e em todo o tempo, nada comparável ao Natal. Enquanto tenho mais de 15 caixas de apetrechos natalinos, para a Páscoa tenho apenas 2 caixas. Alguns coelhos, ovos de avestruz, e se tiver sorte, um cheiroso e perfumado bouquet de chá de macela, colhido no mato e abençoado na manhã da sexta-feira santa. 

A Páscoa mexe com minhas emoções. 

Todo o calvário de Cristo – sempre encenado e lembrado no colégio franciscano em que estudei – tem cada vez mais significado e importância em minha vida. Se a história de fato aconteceu, não sei. O que cada vez mais sei é dos sacrifícios que pais e filhos, a humanidade inteira faz por conta de injustiças e incompreensões. 

A quinzena

Os dias passam, e cada vez mais, o cansaço me alcança. As pernas doem, a coluna reclama, os braços recusam a carga. Se me perguntarem o que quero, eu quero é dormir. Olhar TV desanima: só notícia ruim (é a COVID19, é a política, a corrupção, a inescrupulosa humanidade que tanto maltrata a natureza, os animais e seus semelhantes). Só notícia ruim. 

Duas semanas atrás me embrenhei, impetuosamente, no meu refúgio no RS. Precisava de silêncio, paz, sossego, leitura, música clássica, silêncio, a cama. O silêncio. O silêncio. Basicamente o silêncio. Era tudo o que eu queria. Me joguei na cama assim que cheguei. E lá fiquei por dois dias. 

Devagar fiz contato com o mundo, via telefone convencional, que aliás, pretendo manter.  Ele dá a medida perfeita da distância necessária pra me manter inteira. Aos poucos, dei sinal de vida e me coloquei à disposição. E cá estou eu, descarrilada de novo. Ao dizer “queres que providencie algo por aqui?” desabei ladeira abaixo: contratei um pintor e aluguei minha casa.  Meu refúgio, meu Xangrilá. Não tinha como não descarrilar!!!! Nem sempre o melhor ou o pior é o que nos deixa mais felizes. Muitas vezes é necessário agir, mudar, seguir em frente, desapegar.

A casa estava à venda há um bom tempo. E por mim ficaria assim ainda por um bom tempo … mas, andava cansada até do meu refúgio. Por isso, quando apareceram dois interessados – Ricardo e Marlon – para alugar, com possibilidade de venda futura, decidimos arriscar. Optamos por Ricardo. Imagina a viagem que foi preparar a casa de 27 anos, pra render uns trocos, reduzir o trabalho e praticar o desapego. Uma correria insana entre discussões contra e a favor de “isso joga fora”, “vou levar pra casa da minha mãe”, “vou levar pra Floripa”, “melhor deixar na casa”. Foi um leva e traz, empacota, contrata caminhão, acomoda apegos … enfim, fiz a minha parte e retornei à Floripa. 

Neste meio tempo, um acidente horrível, com a explosão de um caminhão carregado de combustível, interditou a ponte e atrapalhou enormemente minha rotina e de toda a cidade; aproveitei a volta pra Floripa e adiantei o implante dentário; chegando em casa, a triste notícia de que um pit bul mordeu o rosto da filha de 2 anos da minha assistente doméstica, ambas internadas. Me joguei na cama de novo. Cansada, aflita e revoltada.

Passados dois dias da minha chegada, ainda não descarreguei o carro. Tenho lido e escrito pouco. Comi todos os doces que encontrei pela casa + o proibidíssimo amendoim torrado = ansiedade máxima. Me refugiei no jogo de paciência Spider Solitarie no computador e nas mídias sociais.

É sábado e a ideia de caminhar na praia, tomar sol e retomar a organização da casa não vai acontecer. Acordei cedo demais – com o barulho da bomba de rebaixamento do lençol freático da obra da casa do vizinho.

Preparei meu coquetel de “levantar defunto”: vitaminas e antidepressivo. Para os sintomas, remédios.

O resto, o tempo ajeita. Tenho aprendido a me dar tempo e respeitar meu tempo. 

O consultório vai bem e ele me faz muito bem.

Assim como eu, tudo tem seu tempo. 

Há de chegar a hora em que o viver será mais brando.

Ecologia caseira

Tenho um marido ecológico, como diria uma amiga, cujo marido é igual ao meu. Aposentado, é ele que insiste em ser o jardineiro da casa. Numa rápida avaliação diria que ele é ótimo com as gramas: no corte, poda e adubação. Com relação aos canteiros, uma lástima. Tudo que germina vai crescer e florescer. Desde as sementes defecadas e espalhadas pelos pássaros, até as plantas que brotam, crescem e se esparramam por todos os lados. Ninguém pode mexer. É a natureza. E assim, as fênix mais parecem buxos gigantes, as Costelas de Adão sobem paredes, os bambus viraram paliteiros no jardim, as experiências com plantas se reproduzem em escala industrial, as orquídeas viraram uma cidade de vasos, e, sempre, segundo ele (de vez em quando, segundo eu) tem uma orquídea raquítica florescendo. Tem os dinheirinhos e outros inços, que de vez em quando, são tirados à faca. Nossos amigos, quando vem nos visitar, sofrem pra chegar na área de entrada da casa: além da escada em V (um erro grosseiro de arquitetura) ainda precisam desviar das Costelas de Adão, pois é inevitável não roçar nas folhas gigantes da planta que avança sobre os degraus. Não sei exatamente o que aconteceu, pois fui eu quem comprei as Costelas de Adão, pensando que fossem do tipo mini: ou me enganaram/enganei com as mudas ou foi excesso de adubo. Só sei que minhas plantas favoritas são as Senhoras da Entrada da casa, postadas feito cavaleiros medievais em suas armaduras de aço. Depois de anos tolerando todos os excessos pelos quatro cantos da casa e abrindo mão de um dos grandes prazeres de estar e contemplar um belo jardim, dei um ultimato: ou meu marido  muda o jardim ou eu mudo. Dia a dia vou olhando com o rabo do olho todas as possibilidades e começo a projetar uma enorme reforma no jardim. De uma coisa, tenho certeza. A transformação vai acontecer. Ou muda o jardim, ou mudo eu. De casa.

Igualzinho à minha mãe

A gente passa a vida tentando ser diferente da nossa mãe, quando a gente vê, tá igualzinho a ela. 100% ainda não! Mas no caminho … 

Enquanto arrumava meu closet me peguei falando pra minha assistente:

  • Céus, este vestido deve ter uns 25 anos. Esse terno era do tempo em que eu clinicava, deve ter uns … 18 anos;
  • Este sapato comprei numa loja que eu adorava, a loja Tal, que pena que fechou. Lá, tinha tudo que eu precisava;
  • Comprei esta bolsa na viagem que fiz para o Chile fazem uns 15 anos. Vou guardar mais um tempo porque a moda de bolsa com franja vai voltar.
  • Esta blusa comprei pra festa de 1 aninho do Felipe.
  • Esta biju era da Fernanda, minha filha. Ela disse pra passar adiante. É uma pena, tão bonita esta biju. Guardei pra mim. Mas nunca usei. Uma pena passar adiante. Talvez um dia eu queira algo assim e não encontre. Volta pra caixa.

Igualzinho à minha mãe. Mudam os tempos, os elementos, mas a essência é a mesma. Chego à conclusão que meu closet e os armários da minha mãe, estão se transformando em Museus da Moda da Família.